Por Flávio Christo
- É
bonito ver esses castelos de nuvens né Dª Vera? – falei, olhando pro topo do
morro, onde às vezes a neblina escondia duas torres de rádio. As chuvas por
aqui quase sempre vinham daquele lado, quando não vinha dali é porque queriam
causar estragos. Dª Vera me respondeu, com olhos muito mais antigos que os meus
e que olhavam agora pra dentro da memória, que quando menina, antes de toda
essa tecnologia, era essa a diversão das crianças. – Papai sentava a gente no
quintal, à noite, quando vinha à fresca. Quase sempre era na mudança de lua –
falou, explicando que o tempo não costumava mudar na lua cheia, e que se ela
tivesse começado com tempo firme, esse só mudaria junto com sua fase – a gente
ficava vendo os cachorros, os jacarés, tudo que tinha desenhado no céu.
Eram
17 irmãos, vindo de quatro casamentos diferentes de seu pai – sua mãe foi a que
eu mais amei – o homem sempre lhe dizia. Era a filha mais velha de seu pai e
nunca chegou a conhecer a mãe que morreu de febres antigas e sem cura quando ela
tinha só uns quatro anos – Minha avó falava que foi tétano, que um irmão meu
morreu no útero dela e só descobriram muito tempo depois, quando ela já tava
perto do fim – contava,sem mostrar tristeza – meu pai nunca confirmou isso. Na
verdade, não sei direito de quê ela morreu e não me magôo porque nem foto tenho
pra saber como ela era!
Era
véspera de dia de ano, e tudo o que se via nela era o desanimo. Havia uma morte
que a maltratava sempre a lembrança – vovó morreu na véspera do natal, fim de
ano pra mim é sempre triste – explicou que era ela quem a protegia das surras e
maus tratos das madrastas. Foi também a avó que lhe ensinou o cultivo de
hortaliças, estávamos nos fundos de sua casa, e ela agora me mostrava a pequena
horta de três canteiros, onde cultivava de tudo o que pudesse – olha ali oh,
tem milho, couve, quiabo, chuchu e jiló, naquele canto ali eu planto mais é flor,
olha aquelas dálias ali, eu roubei umas três sementinhas dum canteiro, olha
como elas tão bonita, dando cada cacho vistoso. Vovó sempre falava que o
segredo era o esterco de galinha.
O
dia estava tórrido de quente, as couves, tristes de tão murchas, no que ela se
justificou - é só por causa do sol, aguei elas hoje de manhã. Quando o sol
descer, eu águo de novo, ai elas ficam bonitas que só. – e nisso ela não mentia.
Acabou descendo as escadas, apanhando algumas folhas e insistindo que eu
levasse pra provar como eram macias – isso com um angu e um feijão fresquinho,
precisa nem mais nada. – Agradeci, mas disse que o bom mesmo àquela hora seria
um café preto, bem forte. Não havia calor que nos tirasse o gosto pro café, meu
e dela, que ela passou na hora e serviu com um pedaço de broa de fubá. Este era
o tipo de tarde que eu tinha como as que eu mais descansava. As vezes
precisamos de algo que nos tire do nosso tempo, que possamos imaginar coisas
que não vimos, que jamais veremos. Há momentos em que somos como crianças urbanas
que acham que frangos nascem nas geladeiras dos mercados e o leite brota de
caixinhas. Pessoas como Dª Vera nos tiram dessa suspensão.
- A
senhora faz a passagem do ano conosco? - perguntei, já na hora de ir.
– vou não menino, vou pra roça, cuidar das minhas plantas, ouvir barulho
de sapo e grilo, esses foguetes que vocês soltam me tiram o sossego. – O que
senti naquele momento pode ser descrito como um sentimento inescrupuloso, mas
era com a parte mais nobre de mim que eu o sentia. Era inveja. Inveja de
conseguir ser tão simples, de aproveitar a vida com coisas pequenas, de
conseguir extrair prazer simplesmente por ver crescer algo que você cultivou. O
abraço que dei foi sincero.
-
Feliz ano novo Dª Vera. – o respeito que sentia por ela era quase uma
reverencia.
-
Que Deus lhe abençoe rapaz! – disse, simples como sempre.
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