domingo, 30 de dezembro de 2012

Castelos de nuvens


Por Flávio Christo

- É bonito ver esses castelos de nuvens né Dª Vera? – falei, olhando pro topo do morro, onde às vezes a neblina escondia duas torres de rádio. As chuvas por aqui quase sempre vinham daquele lado, quando não vinha dali é porque queriam causar estragos. Dª Vera me respondeu, com olhos muito mais antigos que os meus e que olhavam agora pra dentro da memória, que quando menina, antes de toda essa tecnologia, era essa a diversão das crianças. – Papai sentava a gente no quintal, à noite, quando vinha à fresca. Quase sempre era na mudança de lua – falou, explicando que o tempo não costumava mudar na lua cheia, e que se ela tivesse começado com tempo firme, esse só mudaria junto com sua fase – a gente ficava vendo os cachorros, os jacarés, tudo que tinha desenhado no céu.
Eram 17 irmãos, vindo de quatro casamentos diferentes de seu pai – sua mãe foi a que eu mais amei – o homem sempre lhe dizia. Era a filha mais velha de seu pai e nunca chegou a conhecer a mãe que morreu de febres antigas e sem cura quando ela tinha só uns quatro anos – Minha avó falava que foi tétano, que um irmão meu morreu no útero dela e só descobriram muito tempo depois, quando ela já tava perto do fim – contava,sem mostrar tristeza – meu pai nunca confirmou isso. Na verdade, não sei direito de quê ela morreu e não me magôo porque nem foto tenho pra saber como ela era!
Era véspera de dia de ano, e tudo o que se via nela era o desanimo. Havia uma morte que a maltratava sempre a lembrança – vovó morreu na véspera do natal, fim de ano pra mim é sempre triste – explicou que era ela quem a protegia das surras e maus tratos das madrastas. Foi também a avó que lhe ensinou o cultivo de hortaliças, estávamos nos fundos de sua casa, e ela agora me mostrava a pequena horta de três canteiros, onde cultivava de tudo o que pudesse – olha ali oh, tem milho, couve, quiabo, chuchu e jiló, naquele canto ali eu planto mais é flor, olha aquelas dálias ali, eu roubei umas três sementinhas dum canteiro, olha como elas tão bonita, dando cada cacho vistoso. Vovó sempre falava que o segredo era o esterco de galinha.
O dia estava tórrido de quente, as couves, tristes de tão murchas, no que ela se justificou - é só por causa do sol, aguei elas hoje de manhã. Quando o sol descer, eu águo de novo, ai elas ficam bonitas que só. – e nisso ela não mentia. Acabou descendo as escadas, apanhando algumas folhas e insistindo que eu levasse pra provar como eram macias – isso com um angu e um feijão fresquinho, precisa nem mais nada. – Agradeci, mas disse que o bom mesmo àquela hora seria um café preto, bem forte. Não havia calor que nos tirasse o gosto pro café, meu e dela, que ela passou na hora e serviu com um pedaço de broa de fubá. Este era o tipo de tarde que eu tinha como as que eu mais descansava. As vezes precisamos de algo que nos tire do nosso tempo, que possamos imaginar coisas que não vimos, que jamais veremos. Há momentos em que somos como crianças urbanas que acham que frangos nascem nas geladeiras dos mercados e o leite brota de caixinhas. Pessoas como Dª Vera nos tiram dessa suspensão.
- A senhora faz a passagem do ano conosco? - perguntei, já na  hora de ir.  – vou não menino, vou pra roça, cuidar das minhas plantas, ouvir barulho de sapo e grilo, esses foguetes que vocês soltam me tiram o sossego. – O que senti naquele momento pode ser descrito como um sentimento inescrupuloso, mas era com a parte mais nobre de mim que eu o sentia. Era inveja. Inveja de conseguir ser tão simples, de aproveitar a vida com coisas pequenas, de conseguir extrair prazer simplesmente por ver crescer algo que você cultivou. O abraço que dei foi sincero.
- Feliz ano novo Dª Vera. – o respeito que sentia por ela era quase uma reverencia.
- Que Deus lhe abençoe rapaz! – disse, simples como sempre.

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