Passou
o dia de uma forma especialmente boa. Tinha acordado cedo, recebido a
aposentadoria e feito compras. Depois jogou na loteria, os seis números que
jogava duas vezes por semana. Voltou para a casa, almoçou a janta requentada,
fez a sesta e foi para a praça jogar umas partidas de damas, céu azul, sol
morno. Era o dia perfeito em sua concepção já havia um tempo. Chegou em casa,
tomou um gole de café e se deitou no sofá, sorriu.
Façamos
agora uma pausa. De nada adiantaria continuar essa história daqui, antes é
necessária uma explicação.
Leco
conhecia Guto há mais de cinquenta anos. Conheciam-se tão bem quanto a si
mesmos. A diferença é que Guto sempre teve vida boa, bom estudo, fez faculdade,
foi doutor. Leco, teve mãe enferma, pai que morreu cedo e vida dura para levar.
Mesmo assim, jamais abriu a boca para fazer maldição por suas aflições. Era
resignado.
A
situação mais abastada do amigo, no entanto, nunca lhe foi confortável. Ele lhe
convidava a lugares onde não sabia como se comportar, a círculos sociais que
não era possível que frequentasse, dava presentes que não podia retribuir. Era,
no entanto, possessivo. Ambos conheciam muito bem seus adjetivos.
Passando
certa vez por uma loja roupas em pronta entrega, Leco viu a camisa mais bonita
de sua vida. Era coisa simples, uma camisa de gola, com listras horizontais em
azul e verde. Tão simples, tão bonita. Tratou logo de achar defeito nela quando
viu o preço. Era demais por uma camisa. Mas aquilo o incomodou. Até sonhou com
ela aquela noite. Estava se arrumando para ir ao baile, gomalina no cabelo
perfeitamente penteado, calça de linho branco catolicamente passada, e o sapato
brilhando como espelho. Mas faltava algo, foi quando se viu, vestindo a camisa
e vendo em si o homem mais belo e bem arrumado dos arredores. Acordou com o
coração palpitando. Seria possível uma roupa lhe causar tal sensação?
No
dia seguinte não se agüentou, passou novamente em frente à loja. Sim, a roupa
era de fato bonita. Foi à cafeteria, pediu um expresso. Lá encontrou Guto, no
meio do café, acabou lhe contando o sonho – mas num é que é estranho compadre?
– Guto respondeu – Cê nunca foi inquietado com as coisas assim. – Na volta,
passaram em frente à loja, Leco mostrou a peça – É bonita de verdade – completou.
Já
não se sentia mais tão bem arrumado depois de ter tido aquele sonho.
Espantosamente percebeu que precisava daquela camisa, ou alguma que lhe
bastasse, mas sabia que nenhuma lhe bastaria – assim que receber, vou comprar
aquela roupa – pensou, mesmo sabendo que levaria quase metade do seu ordenado.
No terceiro dia de sua inquietação passou novamente em frente à loja, só pra
conferir se seu objeto de desejo ainda se encontrava na vitrine. Não estava
mais. Sentiu um frio estranho na barriga, nunca tinha sentido coisa parecida,
mas sentiu dessa vez. Aquela roupa era sua, mesmo que não a tivesse comprado.
Entrou
na loja, encontrou Guto, acabando de pagar pela peça de roupa que tanto
desejava. Sabia que não tinha outra peça como aquela. O amigo nem sequer notou
sua presença, e ele saiu sem chamar atenção. Sentiu-se magoado. É certo que não
era obrigação do amigo saber do desejo tão profundo que sentia pela roupa, mas
ainda assim, aquilo era traição. No dia seguinte, não foi à cafeteria, sabia
que encontraria Guto por lá, no sábado não foi jogar a partida de buraco na
casa do amigo, como já era de costume, nem apareceu no almoço de domingo, quando
o via na rua atravessava discretamente, e nem retornou às ligações por tanto
tempo que elas pararam de acontecer.
Não
via mais nele seu amigo. Como conhecia seus defeitos, sabia da necessidade de
se sentir superior que Guto sempre teve, desde criança, quando não aceitava
perder em uma brincadeira ou ser o ultimo em um jogo. Leco sempre cedeu, por
ser mais humilde, e por não ver necessidade de se sentir superior em nenhuma
dessas situações. Mas agora toda essa raiva e compreensão de todos esses anos
vinham juntas, e culminaram em um ato de total exclusão. Simplesmente
desapareceu, por cinco anos.
Voltamos
então, para a casa de Leco, na situação que descrevemos logo no inicio. Ele
estava deitado no sofá, sorrindo, com os dentes amarelos de café, quando o
telefone tocou. Não precisou da pessoa do outro lado da linha se identificar
para que ele soubesse de quem se tratava – Seu amigo morreu – Falou Rose. Leco
desligou o telefone sem dizer palavra. Mesmo com a mágoa, sabia que deveria ir
ao velório – merda, o dia tava tão bom!
- De
que morreu? – perguntou à viúva – de mal do coração, não se agüentou, reclamava
de dor desde cedo. Foi cochilar a sesta e não acordou mais. – respondeu. Leco sentia-se
mal por não demonstrar tristeza, seus olhos estavam secos, mesmo vendo o amigo
de tanto tempo dentro do esquife. – Ele sentia sua falta, não passava um dia em
que não comentasse, nunca entendeu porque você sumiu – disse a mulher - Dá uma
chegada aqui, quero te mostrar uma coisa.
Entrou
com ela no quarto do casal, ela abriu o guarda roupa tirou um bilhete e o
entregou. – parece que sabia o que ia
acontecer, escreveu isso hoje de manhã e pediu que eu te entregasse – disse -
agora dá licença, tenho que fazer sala pras pessoas – a voz dela era mais
magoada do que triste. Leco abriu o bilhete, um recado simples estava escrito “Abra
a terceira gaveta do guarda roupa.” – era o típico metodismo de Guto se
manifestando naquele recado. Quase foi embora, mas resolveu realizar aquele
ultimo desejo.
Dentro
da gaveta estava um único embrulho prateado, uma fita com laço vermelho e um
adesivo vedando a entrada de ar. Pegou o embrulho sem saber exatamente o que
fazer, por fim, abriu. O pano ainda conservava o cheiro de novidade, a etiqueta
da loja ainda estava presa na camisa, e dentro do embrulho outro bilhete,
também simples, escrito à mão, a letra desenhada como nos convites de casamento
“finalmente um presente que sei que irá gostar, forte abraço.”.
Leco
ergueu no ar a camisa listrada de azul e verde, aquela mesma camisa que viu o
amigo comprar cinco anos antes, estava todo esse tempo guardada a sua espera.
Vestiu, olhou-se no espelho e se sentiu completo como há muito tempo não se
sentia – ela é realmente linda – pensou. Nesse mesmo instante sentiu-se
enojado. Viu no espelho um monstro que não era ele. Olhou os bilhetes na mão –
me desculpa – sussurrou. Retirou a camisa e a cheirou novamente. Sentou na cama
do amigo. Chorou.
Que profundo e triste :( mas um belo texto!
ResponderExcluirhahaha - profundo? ok! triste eu concordo!
ExcluirAiii =/
ResponderExcluirLindoooo!