terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A rotina do velho Amâncio


Há dois meses que aquela dor de estômago o afligia. Era uma queimação que começava de manhã, logo após o primeiro gole de café preto que, apesar da dor que vinha lhe causando, bebia rigorosamente todos os dias às seis e meia – mamãe viveu 98 anos sem ter conhecido um médico – dizia sempre que a esposa insistia em chamar o doutor da cidade.
Se tivesse que defini-lo em um adjetivo seria “turrão”. O máximo da modernidade que conheceu foi no tempo em que trabalhou nas bombas d’água da companhia de saneamento. Batia no peito orgulhosamente, sempre dizendo que, se não fosse ele, não haveria água encanada nas casas. Na verdade, não havia. A modernidade só chegou a uns 25 ou 30 mais afortunados, apenas aos que tinham dinheiro que chegasse para tanto, coisa que ele mesmo não possuía. O restante se virava na divisão de poços cavados à mão, com liquido que brotava do barro, às vezes vinha mais terra do que água.
Dona Beata, sua dona, não passava um dia sem reclamar das dores nas costas que o ir e vir de baldes a vida toda lhe causou. Nenhum medicamento do mundo lhe bastava – começa aqui perto da bunda e sobe até perto das costelas – repetia fazendo careta.  Ele então ia ao quintal, fazia um emplasto de arnica com álcool de cana (receita que aprendeu com a avó benzedeira) e esfregava nas suas costas até esquentar, ela deitava por meia hora, mas era o máximo que conseguia – Fica de repouso mulher, parece que tem formigas no rabo – esbravejava. – Não dá – respondia – sinto gastura de ficar deitada. – Quarenta e cinco anos ouvindo a mesma resposta já a tinha transformado em uma rotina que não o machucava mais.
Hoje, no entanto, o dia nasceu diferente. A dor no estômago já estava com ele antes mesmo do café preto, ficou como herança de ontem. Além dela vinha um mal estar no corpo que lhe dava náuseas, os ossos rangiam como uma porta velha, e dor atrás dos olhos, qualquer luz machucava. 72 anos de rotina foram quebrados por causa desse conjunto de males. Ao invés do café, pediu um copo de água fresca. Como não passou, arrancou na horta um pouco de capim limão e fez chá sem açúcar, depois disso deitou na rede. Adormeceu. Beata tinha saído pra comprar o peixe de sexta - promessa feita há muito tempo, para o caso do filho prematuro vingar, às sextas não comeria carne vermelha. O filho vingou, mas acabou por morrer cedo, a promessa, no entanto, continuava a ser cumprida “em dívida com santo não se brinca” dizia sempre ao almoçar sardinha – Quando voltou, o encontrou a rede, as mãos há muito cobertas de pintas pretas, caída mole em direção ao chão. Quase teve um troço.
Notícia ruim corre rápido. Menos de uma hora e o médico já estava em sua casa, pediu a um vizinho que o ajudasse a transportar o paciente pra cama. Desacordado estava, e assim ficou por umas boas três horas ainda. Quando acordou viu o homem de roupa branca conversando com Beata, demorou uns dois minutos pra ter total consciência do que via ao redor. O homem entregava dois frascos marrons a ela, sabia o que via, só não conseguia entender o que falavam. A notícia da doença veio pouco depois  - pode ser gastrite, ulcera, ou coisa pior. Seria bom se fossemos ao hospital da capital examinar isso direito. – explicou o doutor – à merda que eu vou! – retrucou. O médico ignorou a grosseria e dirigiu-se à Dona Beata – ligarei para a capital, vou ver se enviam um carro, amanhã o transferimos pro pronto socorro. Por enquanto, dê os remédios para lhe aliviar a dor, e o mantenha repousado – concluiu.
 Quando Beata voltou ao quarto, o marido já havia adormecido de novo, nem sequer teve tempo de lhe dar o analgésico. Dessa vez o sono foi mais longo, acordou só lá pelas seis, se queixando que a dor estava insuportável – toma o tônico, Amâncio – implorou a mulher.  – Não tomarei merda nenhuma.  – respondeu magoado - Tudo o que sempre te disse é que não queria ir a médico nenhum, de tudo o que poderia ter pedido, foi só isso que eu insisti. Será que nem isso você poderia respeitar? – sentia-se impotente, deitado na cama, com os ossos doendo, e sem conseguir levantar – traz o penico – gritou.
Pouco depois ouviu o som de uma galinha sendo degolada, Beata preparou uma canja, e lhe serviu um prato bem quente, do jeito que ele gostava. Mas a boca amargava, nenhum tempero mudava isso. Forçou-se a comer de qualquer forma. Sentia-se fraco, sabia que precisava da sopa, mas cada colherada parecia uma dose de ácido quando batia no estômago – saco – xingou, quando a dor não lhe permitia mais ser escondida. Mais tarde veio a febre, um estremecimento frio passando pelo corpo, uma gota gelada de suor que desceu pelo veio da coluna. Beata havia acendido duas velas no altar do quarto, ajoelhada e com um terço na mão, rezava à Nossa Senhora Aparecida e à São Judas Tadeu. Isso quase o aborreceu - minha causa não é tão impossível – pensou.
Quando a dor já se mostrava insuportável, cedeu, ainda que se fingisse forçado, a tomar uma colher do tônico.  Outra vez o amargo, mas desconfiava que agora esse era o gosto real do liquido. Pouco depois já delirava. Jurava ter visto a mãe entrar no quarto, não a sua mãe velha, mas a lembrança que tinha dela de quando ainda era um moleque. Veio de camisola branca engomada, cheirinho de alfazema.  – queria muito comer um bolinho de chuva – disse à ela, mas a ilusão já havia passado, e só o que enxergou foi o rosto atônito da esposa.  Pediu água. O tônico não havia feito efeito. 20 anos de abstinência estavam à prova naquele momento – Daria tudo por um gole de cachaça – sentiu a queimação aumentar no estômago, começou a lhe subir pelo esôfago. Em outro delírio, viu seu filho lhe segurar pelo braço, sentiu marejar os olhos.  – Isso foi por que não tomei meu café essa manhã – ainda não suportava a ideia de ter quebrado a rotina. A queimação continuou a subir, agora chegava à garganta. Pôs a mão em frente à boca pra abafar um arroto que saiu meio abafado, meio soprado. Foi esse seu ultimo suspiro.

3 comentários:

  1. Interessante o conto... Bem elaborado, com detalhes ... Gostei do velho Amâncio. rsrs Vc manda bem, Flávio. Continue escrevendo! Abraço

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  2. Parabéns Flávio!

    Gostei da maneira como você escreve. Vou aguardando e acompanhando seus textos por aqui. Abraço

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    1. Vlw camarada. Pode deixar que te mantenho informado do que eu publicar! hahahaha - abraço

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