Há
dois meses que aquela dor de estômago o afligia. Era uma queimação que começava
de manhã, logo após o primeiro gole de café preto que, apesar da dor que vinha
lhe causando, bebia rigorosamente todos os dias às seis e meia – mamãe viveu 98
anos sem ter conhecido um médico – dizia sempre que a esposa insistia em chamar
o doutor da cidade.
Se
tivesse que defini-lo em um adjetivo seria “turrão”. O máximo da modernidade
que conheceu foi no tempo em que trabalhou nas bombas d’água da companhia de
saneamento. Batia no peito orgulhosamente, sempre dizendo que, se não fosse
ele, não haveria água encanada nas casas. Na verdade, não havia. A modernidade
só chegou a uns 25 ou 30 mais afortunados, apenas aos que tinham dinheiro que
chegasse para tanto, coisa que ele mesmo não possuía. O restante se virava na
divisão de poços cavados à mão, com liquido que brotava do barro, às vezes
vinha mais terra do que água.
Dona
Beata, sua dona, não passava um dia sem reclamar das dores nas costas que o ir
e vir de baldes a vida toda lhe causou. Nenhum medicamento do mundo lhe bastava
– começa aqui perto da bunda e sobe até perto das costelas – repetia fazendo
careta. Ele então ia ao quintal, fazia
um emplasto de arnica com álcool de cana (receita que aprendeu com a avó
benzedeira) e esfregava nas suas costas até esquentar, ela deitava por meia
hora, mas era o máximo que conseguia – Fica de repouso mulher, parece que tem
formigas no rabo – esbravejava. – Não dá – respondia – sinto gastura de ficar
deitada. – Quarenta e cinco anos ouvindo a mesma resposta já a tinha
transformado em uma rotina que não o machucava mais.
Hoje,
no entanto, o dia nasceu diferente. A dor no estômago já estava com ele antes
mesmo do café preto, ficou como herança de ontem. Além dela vinha um mal estar
no corpo que lhe dava náuseas, os ossos rangiam como uma porta velha, e dor
atrás dos olhos, qualquer luz machucava. 72 anos de rotina foram quebrados por
causa desse conjunto de males. Ao invés do café, pediu um copo de água fresca.
Como não passou, arrancou na horta um pouco de capim limão e fez chá sem açúcar,
depois disso deitou na rede. Adormeceu. Beata tinha saído pra comprar o peixe
de sexta - promessa feita há muito tempo, para o caso do filho prematuro
vingar, às sextas não comeria carne vermelha. O filho vingou, mas acabou por
morrer cedo, a promessa, no entanto, continuava a ser cumprida “em dívida com
santo não se brinca” dizia sempre ao almoçar sardinha – Quando voltou, o
encontrou a rede, as mãos há muito cobertas de pintas pretas, caída mole em
direção ao chão. Quase teve um troço.
Notícia
ruim corre rápido. Menos de uma hora e o médico já estava em sua casa, pediu a
um vizinho que o ajudasse a transportar o paciente pra cama. Desacordado estava,
e assim ficou por umas boas três horas ainda. Quando acordou viu o homem de
roupa branca conversando com Beata, demorou uns dois minutos pra ter total consciência
do que via ao redor. O homem entregava dois frascos marrons a ela, sabia o que
via, só não conseguia entender o que falavam. A notícia da doença veio pouco
depois - pode ser gastrite, ulcera, ou
coisa pior. Seria bom se fossemos ao hospital da capital examinar isso direito.
– explicou o doutor – à merda que eu vou! – retrucou. O médico ignorou a
grosseria e dirigiu-se à Dona Beata – ligarei para a capital, vou ver se enviam
um carro, amanhã o transferimos pro pronto socorro. Por enquanto, dê os
remédios para lhe aliviar a dor, e o mantenha repousado – concluiu.
Quando Beata voltou ao quarto, o marido já
havia adormecido de novo, nem sequer teve tempo de lhe dar o analgésico. Dessa vez
o sono foi mais longo, acordou só lá pelas seis, se queixando que a dor estava
insuportável – toma o tônico, Amâncio – implorou a mulher. – Não tomarei merda nenhuma. – respondeu magoado - Tudo o que sempre te
disse é que não queria ir a médico nenhum, de tudo o que poderia ter pedido,
foi só isso que eu insisti. Será que nem isso você poderia respeitar? – sentia-se
impotente, deitado na cama, com os ossos doendo, e sem conseguir levantar – traz
o penico – gritou.
Pouco
depois ouviu o som de uma galinha sendo degolada, Beata preparou uma canja, e
lhe serviu um prato bem quente, do jeito que ele gostava. Mas a boca amargava, nenhum
tempero mudava isso. Forçou-se a comer de qualquer forma. Sentia-se fraco,
sabia que precisava da sopa, mas cada colherada parecia uma dose de ácido
quando batia no estômago – saco – xingou, quando a dor não lhe permitia mais
ser escondida. Mais tarde veio a febre, um estremecimento frio passando pelo
corpo, uma gota gelada de suor que desceu pelo veio da coluna. Beata havia acendido
duas velas no altar do quarto, ajoelhada e com um terço na mão, rezava à Nossa
Senhora Aparecida e à São Judas Tadeu. Isso quase o aborreceu - minha causa não
é tão impossível – pensou.
Quando
a dor já se mostrava insuportável, cedeu, ainda que se fingisse forçado, a
tomar uma colher do tônico. Outra vez o
amargo, mas desconfiava que agora esse era o gosto real do liquido. Pouco depois
já delirava. Jurava ter visto a mãe entrar no quarto, não a sua mãe velha, mas
a lembrança que tinha dela de quando ainda era um moleque. Veio de camisola
branca engomada, cheirinho de alfazema. –
queria muito comer um bolinho de chuva – disse à ela, mas a ilusão já havia passado,
e só o que enxergou foi o rosto atônito da esposa. Pediu água. O tônico não havia feito efeito.
20 anos de abstinência estavam à prova naquele momento – Daria tudo por um gole
de cachaça – sentiu a queimação aumentar no estômago, começou a lhe subir pelo
esôfago. Em outro delírio, viu seu filho lhe segurar pelo braço, sentiu marejar
os olhos. – Isso foi por que não tomei
meu café essa manhã – ainda não suportava a ideia de ter quebrado a rotina. A
queimação continuou a subir, agora chegava à garganta. Pôs a mão em frente à
boca pra abafar um arroto que saiu meio abafado, meio soprado. Foi esse seu
ultimo suspiro.
Interessante o conto... Bem elaborado, com detalhes ... Gostei do velho Amâncio. rsrs Vc manda bem, Flávio. Continue escrevendo! Abraço
ResponderExcluirParabéns Flávio!
ResponderExcluirGostei da maneira como você escreve. Vou aguardando e acompanhando seus textos por aqui. Abraço
Vlw camarada. Pode deixar que te mantenho informado do que eu publicar! hahahaha - abraço
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