quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Toca

Flávio Christo

- Não Meleca, você tem que ir por trás dele, ai lá atrás você cai, entendeu?
Meleca não falava muito, mas entendia quando lhe diziam o que fazer.
- Tendi sim! – respondeu com aquela voz rouca e afetada.
O plano era o Meleca passar entre duas barracas da feira, quando chegasse atrás dos feirantes, caia, fingia uma convulsão colocando um sonrisal na boca, assim todos se distraiam e eu roubava umas frutas. Fazia quase um dia que estávamos só cheirando cola, sem colocar nada pra dentro da barriga.
- Agora vai, mas vai rápido!
Meleca saiu andando, fingindo uma leve cambaleada, na hora certa ele caiu de um jeito tão bonito no chão que até eu quase acreditei que ele tinha desmaiado mesmo. Um monte de gente parou pra olhar e ajudar a socorrer. Enquanto isso eu catei o que pude da barraca mais próxima, quando tava a uns bons vinte metros, soltei um assovio. Meleca se levantou como quem se recupera lentamente, é bom ator o desgraçado, pediu um copo d’água e de quebra ainda ganhou três maçãs “deve ter passado mal de fome, coitado” falou uma feirante gorda com um pano na cabeça.
Nenhum de nós comeu nada até estar no lugar seguro e combinado. Morávamos, eu e ele, no vão de um viaduto uns 500 metros pra baixo da feira. O buraco era pequeno, entrava só nós dois, por isso era seguro, gente grande não passava. Ali dava pra esconder dos outros sem ser achado e, se fosse achado, sem ser pego.  Quando contamos, tinha dado uma penca pequena de bananas, cinco mexericas e as três maçãs do Meleca. Dava pra forrar a barriga até o dia seguinte pelo menos.
Comecei comendo uma mexerica que tava até brilhando a casca de tão fresquinha “olha Meleca, olha que coisa bonita. Quem vende isso aqui num passa fome não. Já imaginou coisa mais gostosa? Não existe. Mexerica é a melhor coisa que tem!” falei. “Sei não, prefiro arroz cum fejão”. “Que bosta hein Meleca? Só abre a boca pra falar merda também. Um dia vou ser fazendeiro, vou ter uns mil pés de mexerica na minha fazenda, pra eu poder vender muito, ficar rico e ainda chupar mexerica o dia todo. Não, melhor, a vida toda!”. Mais que pra não arrumar confusão do que pra consentir com meu pensamento, Meleca ficou calado, só escutando. Depois de uma mexerica e uma maçã pra cada, demos uma puxada boa na garrafa de cola. Dormimos.


Meu nome é Arlindo, mas todo mundo me conhece por Meleca,o por que eu não sei. É desses apelidos que surgem de uma mistura de nada com não sei o quê. Acho que tenho nove anos. Moro com meu amigo Rafinha embaixo do viaduto. Gosto dele, só que fala muito. Só porque tem nome bonito e completo acha que é bom. Ele diz que é Rafael Couto dos Reis. Outro dia falei pra que não é por que tem rei no nome que é rei de verdade, mas o moleque não entende. Mais cedo roubamos os feirantes, conseguimos uns negócios pra comer, ai ele deu uma cheirada na cola e ta dormindo há tempão. Eu já dormi e acordei, e já voltei na feira, na xepa, pra ver se consigo alguma coisa.
 O Rafinha tinha falado que queria ser dono de fazenda de pé de mexerica, pra poder comer mexerica o ano todo. Imagino que o feirante faça isso também, gordo que é. Pedi pra ele se tinha alguma coisa pra mim, me deu mais três bananas despencadas e amassadas, mas já era algo. Fiquei conversando com ele um pouco “Deve ser bom ser fazendeiro de mexerica, né? Comer isso o ano todo?” “Num é não moleque, mexerica só dá uma vez no ano.Só em maio” “mas o senhor não vende o ano todo?” “mexerica não, vendo outras coisas” “e por que não vende?” “por que não tem, oras, acabei de te falar! Agora chispa daqui, vai embora.” As pessoas tinham tendência a perder a paciência comigo, eu nunca entendi o motivo.
 O asfalto tava quente, queimava a sola do meu pé, que mesmo já grossa ainda sentia uma coisa ou outra. Pra aliviar a dor, dei uma cheirada na garrafinha de cola. No meio da onda, dois caras me agarraram. Fiquei bem umas duas horas sem entender o que tinha acontecido. Quando dei por mim, tava num quarto, trancado e sem janela. Desesperei. Procurei a garrafa pra todo lado e não achei. Apaguei de novo. Dizem que eu tava tendo convulsões, dessa vez deve ser de verdade, por que eu não lembro de ter fingido. Me levaram pra uma sala, onde um cara tava sentado numa mesa, era alto, careca e cheirava a cigarros. Fiquei na frente dele.
- Qual seu nome moleque?
- Arlindo.
- Arlindo de quê?
- Arlindo de Arlindo só, tenho outro nome não.
- E como chama sua mãe?
- Tenho mãe não senhor.
- Tá brincando comigo moleque?
- Tô não senhor, é verdade. Num conheço mãe não, meu nome é Arlindo de Arlindo só, na rua me chamam de Meleca, mas nunca de chamaram de nada além dessas coisas não.
- E como você sabe que seu nome é Arlindo então?
- Não sei não senhor, só sei que eu sei. Talvez então nem seja, mas até agora era.
- Leva ele pro alojamento – ele falou com uma mulher que tinha me levado até na sala dele, depois virou pra mim e falou – você gosta de alguma coisa moleque? Carpintaria, cuidar de bichos, plantação?
- Plantação eu gosto sim, onde tem comida eu gosto de tá.
- Sabe ler?
- Não senhor.
- Já foi na escola alguma vez?
- Escola?
- Ok. Lurdes leva ele pro alojamento, dá um banho nele, e leva lá pra horta depois.
Lurdes me deu um banho bruto, sem cuidado, parecia que queria tirar todas as minhas caracas. Na horta ela me deixou com um velho, acho que chamava Geraldo. Ele era curvado e banguela, mas tinha uma boa habilidade na com a enxada na mão. Tava me mostrando o que era a couve, o alface, o agrião. Assim que ele falou o quê era o quê eu já tinha esquecido. Mas então ele me levou numa caixa d’água, só que não tinha água dentro, tinha terra, uma terra preta, molhadinha, dava vontade de comer. Ele enfiou a mão lá dentro e tirou um punhado de terra, no meio, umas minhocas. “isso aqui é húmus, terra de minhoca, a gente enfia as minhocas aqui e elas deixam a terra assim. É terra boa de plantar, dá pra vender isso aqui.” “e por que a terra fica preta assim?” “por que é a merda da minhoca, ela come a terra e depois caga.” Na mão dele tinha umas pouquinhas minhocas, ele jogou pra dentro da caixa de novo e tapou com uma tela fininha “tem que deixar tampado, senão os passarinhos comem tudo”.
A noite, no alojamento, tinha uma cama só pra mim, mas tinha que tomar banho de novo, antes de dormir. Eu não queria, mas fui obrigado. Senti falta da minha garrafa, mas não conseguia imaginar onde podiam ter escondido. Deitei numa cama que tinham dito que era minha. Apaguei. Acordei ouvindo umas vozes perto de mim “tem que segurar pelos braços e pelas pernas” consegui distinguir isso no meio do bochicho. Abri o olho e vi quatro moleques em volta da minha cama, assim que vi, um deles me tapou a boca, outros dois me seguraram na cama “fica quieto que vai ser melhor!”. Eram todos mais velhos, quase homem já. Aí me viraram de costas, me seguraram, baixaram minha calça e fizeram coisas que dá vergonha de falar. Só conseguia chorar, humilhado. Lurdes deve ter ouvido a risada deles, porque chegou no alojamento um pouco depois e pegou eles. Me levou embora. “Por que você tava fazendo aquilo?” “eu não queria, eles me obrigaram.” “e por que você não pediu ajuda?” “Eles disseram que ia ser pior”, eu chorava desesperado. Ela me deu um bofetão no meio da cara de disse “é pra você aprender a ser homem.”. Não me levou de volta pro alojamento, mas pro quarto que eu tava depois que cheguei. Não preguei o olho a noite toda.
De manhã me levou pra horta de novo “hoje vai aprender a plantar umas sementes”, me falou Geraldo. Era um cara bom, o único que me tratou bem. Ficamos um tempo plantando. Depois sai um pouquinho, fui lá ver as minhocas de novo. Enfiei a mão na terra e puxei, na hora saiu um monte de minhoca, tudo remexendo nos meus dedos. Foi nessa hora que olhei pra cima. A cerca tava vazia, sem ninguém vigiando. Era muita sorte. Enfiei no bolso a mão cheia de terra, com minhoca e tudo. Fui andando devagarzinho, pra ninguém desconfiar. Fugi.

Meleca ta sumido desde ontem. Dormi depois da farra na feira. Acordei e ele não tava mais aqui. Acho que foi embora. Hoje cedo acabou a cola e não consegui comprar mais. Consegui um pouco de tinner. To comendo tudo que a gente conseguiu, acho que ele não volta. Hoje cedo consegui roubar um frango de padaria. Fiquei de tocaia na esquina até o cara entrar pra atender um cliente. Quando ele entrou, corri, enfiei o frango dentro de uma sacola de pano e saí correndo. Tava assadinho, cheiroso, crocante. Peguei uma coxa, uma só, é levei o frango lá no pátio da catedral, onde os maiores ficavam de dia. Consegui só meia garrafinha de tinner pelo frango, eles disseram que até valia uma inteira se eu não tivesse tirado uma coxa “um frango inteiro, uma garrafa inteira. Se não trouxe o frango todo, como vou te dar a garrafa toda?” era justo. Voltei pro viaduto.
Já tava bem no fim da tarde quando eu vi o Meleca cambaleando na beira do rio. Tava suando frio, com uma roupa diferente, com um cheiro bom de sabonete. “Meleca? Que houve cara?” ele tava falando mais embolado que nunca. Num dava pra entender nada. Levei ele pra toca. Demorou um pouquinho até que ele falasse algo que desse pra entender, só depois que o tinner entrou nele que conseguiu dizer coisa com coisa “me levaram pra FEBEM cara.”. Fiquei triste por ele “mas lá tem comida pra caramba. Desde ontem eu comi umas quatro vezes já!” “Sério?” “Sim, comi até carne.”. Senti até inveja. “Porque tu fugiu então?” “tava precisando da cola, mas o tinner até que serve” “lá não tinha?” “não. Me disseram que eu tava tendo absti... abasti... abaste... ah, um negócio lá que eu não sei falar” “será que é doença?” “é não, agora to melhor já.”.
Depois de um tempo quieto, ele pareceu voltar a seu estado normal. “ontem voltei na feira, conversei com o fazendeiro” “pra quê?” “perguntei pra ele como era ser fazendeiro de mexerica, não entendi por que, mas ele disse que mexerica dá só em maio” “e o resto do ano” “no resto do ano não tem mexerica” “então pra quê eu vou plantar mil pés de mexerica?” “não vai mais. Tenho uma coisa mais legal” “nada é mais legal que mexerica” “é sim, plantar minhoca” “e minhoca se planta?” “planta sim, vi lá na FEBEM.” “e minhoca se come” “comer não come, mas a gente vende a bosta dela” “quem vai comprar bosta de minhoca cara? Ficou bobo? Dá uma cheirada no tinner e já começa a falar merda” “todo mundo compra, é bom pra plantação” “e onde a gente vai arrumar minhoca?” Ai ele levou a mão no bolso e tirou um torrão de terra, cheio de minhocas “ontem a tarde tinha só umas três na hora que eu vi, hoje, quando enfiei a mão na terra, saiu esse monte aqui” “cresce rápido então né?” “cresce” “e o que a minhoca come?” “terra” “e quanto tempo demora pra gente ganhar dinheiro” “se crescer igual eu vi crescendo lá, semana que vem a gente já ta vendendo”. A notícia era boa demais pra ser verdade. Quase chorei de alegria “a gente nunca mais vai passar fome meleca” “nunca mais cara”. Dei um abraço nele, tava feliz que tivesse voltado. Era a única pessoa que eu confiava. Dividi com ele a ultima mexerica. “Viva as minhocas, Meleca” “Viva!”.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Meados da década de 1950


Na manhã em que acordou para seu fatídico fim, Roberval fez tudo como fazia normalmente. Tomou seu café com uma fatia de queijo minas, tratou das galinhas e dos cães. Desceu pra horta. Não sabia e nem haveria de saber que naquele mesmo dia morreria de uma forma tão espetacular que o faria ser lembrado por anos como o Cristo do interior. Como um homem que soube morrer.
Dias antes estava preparando a cerca, um jegue havia descido a ribanceira descontrolado e arrebentado parte dela. Carecia de ser arrumada. Um mourão de eucalipto a cada metro e meio, e um arame tão bem esticado que dava pra tirar nota musical dependendo do toque que se dava. Única raiva que sentia era ter que cavar a terra molhada e pesada, culpa da incessante chuva de cinco dias. Não tinha jeito, era trabalho que não podia esperar, senão as vacas comiam toda a plantação. Como poderia saber que, por ironia, estava armando ele a própria armadilha, fadando a si mesmo ao fim prematuro?
Havia acabado de completar 33 anos, trabalhava com a terra desde que se entendia por gente. Nunca foi homem de cidade, preferia o cheiro de mato, a textura do barro. A mulher que tinha delírios de modernidade. Certa vez cismou de ir no vilarejo assistir a moda da época, um cinema itinerante que ficaria apenas um dia por ali, talvez nunca mais voltasse. “Falam que eles colocam as pessoas numa tela branca, é como se tivesse tirado um monte de foto, só que as fotos se mexem” “foto se mexendo? Isso não pode ser coisa de Deus não. Não vamos” ponto final.
Sua plantação ficava a quase dois quilômetros de casa, numa outra parte da fazenda em que vivia como colono. Mesmo sem noção política, nunca entendeu essa injustiça “é muita terra pra pouca gente”. No caminho, passava pela casa do dono. Um casarão branco, com janelas de madeira e alicerces pintados de azul turquesa, um verdadeiro primor. Mesmo não achando justo, sempre aprendeu a não cobiçar as coisas do próximo, e por isso não cobiçava, mas também não o amava.
 Apesar de arranjado, teve um casamento feliz. Sempre que saia de casa, via a esposa ainda ao longo da estrada, e sempre que olhava pra trás, ela estava na porta, pronta pra lhe acenar um tchau com a mão e com o coração apertado por vê-lo ir. Na porta continuava até que ele virasse a curva. Naquela manhã, ela tinha aconselhado que não saísse de casa, pois a chuva não lhe deixaria trabalhar. Sempre foi teimoso, nunca conseguiu ficar preso Depois do café, foi para a plantação, como sempre. Na virada da virada da curva, deu seu ultimo aceno.
Tinha a mania de conversar com as plantas, adorava ver uma semente crescer. Não que acreditasse que as plantas ouvissem, mas era terapêutico fazê-lo. Tinha apreço particular por um pé de mexerica, com sete anos de idade, que florescia todo mês de maio, dando tanto fruto que entortava os galhos.  Adubou a terra, arou um canteiro, plantou cenouras, colheu couve.  Almoçou a marmita. A terra continuava molhada e escorregadia. Parte da plantação era em um local com morro, onde a parte mais baixa acabava na cerca recém reformada. Voltou àquele ponto, continuou a colheita.
Não, não há, nem nunca existirá, uma premonição da morte. Não há anjos que o avisem que em instantes você estará inerte. Não há sinos que toquem. Jamais houve, e se houve, jamais saberemos a verdadeira versão destas histórias. A verdade é que Roberval capinava o canteiro, recolhendo erva daninha como em qualquer outro momento poderia estar fazendo, e se abaixou para retirar com a mão uma raiz mais difícil como sempre fazia e lentamente escorregou em uma folha de couve molhada que havia no chão. Escorregou inocentemente, sem sequer usar as mãos como apoio, batendo com força o rosto na enxada. Com sangue escorrendo pelos olhos, viu o mundo começar a girar e entendeu que estava rolando ladeira abaixo. Em um relance de visão, viu a cerca se aproximando, inevitavelmente se chocaria com ela, e foi nesse momento que percebeu que inexoravelmente estava morto. Notem que não foi premonição e sim, simples dedução.
Bateu de costas num mourão que rachou, soltando uma lasca que lhe atravessou o peito. Os braços ficaram abertos, a camisa de moletom grudou no arame farpado e os manteve dessa forma. Sobreviveu apenas o suficiente pra entender que não havia transcendência alguma. Que a vida poderia tanto existir, como não existir. Era apenas uma questão de instante. Num instante você é, no outro não é mais. Simples assim. Foi encontrado apenas no dia seguinte, pela esposa horrorizada. Ela veio lhe procurar por não ter voltado para a casa no dia anterior. Guardou o luto para o resto da vida.
Ninguém sabe precisar ao certo a data em que ocorreu. A lembrança exata se esvaiu com o tempo. O que se sabe é que o mourão foi substituído por uma cruz branca e alta. Na fazenda, até hoje conta-se a história, mas já há nela ares de lenda. Alguns dizem até que é possível vê-lo na horta em algumas ocasiões. Mas isso é o que acontece com os mitos, com as pessoas que sabem morrer, que morrem de forma grandiosa: Viram histórias fantásticas.  A semelhança com Cristo quase lhe rendeu cultos entre os colonos. Diziam que seria a salvação deles. Foi quase, o culto não ocorreu. Roberval no entanto atingiu fama que jamais pensou em conquistar em vida, na verdade, jamais pensou no que seria fama.  Nasceu, cresceu e morreu como um homem da terra.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Fim de setembro


Por Flávio Christo
Tentei achar outros termos pra descrever minha situação. Fui dos mais chulos aos mais requintados, mas nada demonstrava melhor o que eu queria dizer do falar que:
- Eu estava fodido! Inexorável e irremediavelmente na merda.
A semana começou com a segunda feira quente, compensando toda a chuva que caiu na folga. Meu cachorro ficou doente, cagou a casa toda. Minha vizinha de baixo reclamou do cheiro e do choro. Recebi uma multa de condomínio. Por ficar limpando a casa, mal dormi durante a noite, o dia de trabalho por isso não rendeu.  À noite, na faculdade, cochilei durante a aula. Cheguei em casa e tudo estava cagado de novo. Repete o ciclo na terça.
Ao fim da semana não consegui bater minha meta, por causa disso, a promoção que eu esperava não veio e foi dada ao cara mais canastrão de todos. Aquele que ganha mérito no serviço da gente. Pra piorar, na sexta feira teve prova, que eu não sabia da existência porque dormi na aula, e não sabia a matéria pelo mesmo motivo. Resumindo, me ferrei.
No domingo fui à casa da minha mãe, precisava de colo, de sossego e de um lugar pra deixar o cachorro correr. Não agüentava mais ele latindo no apartamento.  Mas eu acho que, se existe, em alguma instância, em algum lugar, de alguma forma, algo que controle a sorte de uma pessoa, a que deveria controlar a minha vida estava em coma.  Começou a chover, meu cachorro ficou preso do outro lado do quintal. Minha mãe ao ir buscá-lo, caiu e quebrou a perna, no caminho pro hospital, bati o carro.
Parece exagero, falando tudo assim resumido, uma coisa atrás da outra. Mas é que desgraça, quando reunida, parece sempre mais volumosa. Nunca fui de crendices, mas depois dessa semana eu resolvi apelar pra alguma coisa. Dei uma chegada num centro de umbanda perto de casa e pedi proteção, comunguei na igreja, jejuei e tomei um passe espírita. Tentei de tudo que pudesse me tirar da maré. No dia seguinte, minha namorada terminou comigo. Perdi o emprego. Resumo: Multa de condomínio, remédio pro cachorro, mãe com perna quebrada, dente faltando – resultado da batida – ferro na faculdade, sem namorada e sem emprego. Isso em sete dias corridos, nem foram dias úteis.
O relógio bateu sete horas e eu acordei mais pelo hábito que pela obrigação. A idéia de estar desempregado ainda não tinha fixado na mente. De qualquer forma lembrar que poderia dormir um pouco mais me fez sorrir. Deitei, não consegui fechar os olhos de novo. Levantei. Fui para o computador e fiz um currículo caprichado. Enviei pra umas dez empresas. Esperei. O dinheiro foi acabando, a paciência, a comida. Ah sim, já tinha dentes de novo, gastei o seguro desemprego arrumando  -  O cachorro finalmente parou de cagar em tudo – pelo menos a casa já não cheirava tão mal. Minha mãe ligou – ta tudo bem mãe/ e a perna, melhorou? – não queria dizer pra ela a merda em que eu me encontrava.  A perna pelo menos melhorava. Agora faltavam só dois meses de pinos. Depois cirurgia e fisioterapia. De alguma forma me sentia culpado pela perna dela, primeiro porque foi o meu cachorro que estava preso no quintal, segundo porque foi culpa da minha maré de falta de sorte (descobri que falar azar dá azar - ops).
Comi a ultima banana da fruteira. A lata de arroz tava quase vazia. Mamãe precisava saber. Quatro reais no bolso. Era a passagem de ônibus apenas. Ida e volta. O ponto era em frente à uma casa lotérica. O vendedor falou – é burro na cabeça. 0912, milhar boa, vai uma ai? – aquilo era ultrajante. O bilhete custava dois reais, o preço da passagem de volta, se a mamãe não estivesse em casa vou teria que voltar à pé, mas a coincidência é demais, 09/12 a data do meu aniversário - Não resisti, comprei.
Mamãe não estava em casa - Puta que pariu - São oito quilômetros de volta, a pé - porque gastei minha grana nessa merda de bilhete? – Cachaça sempre tem que te ofereça. Alves, ex-companheiro de trabalho, me chamou pra uma depois que nos encontramos no meio do caminho. Fiquei sem graça de pedir o dinheiro emprestado mas aceitei a aguardente de bom grado. Bebi o copo liso em dois goles. Aquilo era o melhor que eu tinha em dias. Na TV empoeirada do botequim, passava o jornal. O repórter com a voz empossada, engravato, falava à distância daquilo que eu vivia na pele – o desemprego subiu 2% em setembro e blá blá blá – parei de prestar atenção e comecei a conversar com o Alves. Cinco minutos depois ele pediu silencio. Olhou fixo pra televisão – perai, é o resultado da loto! – Olhei também, odiando ter gastado minha ultima grana com essa merda. Um minuto depois estava murmurando “finalmente acordou hein rapaz...” mais pra mim do que pra qualquer outra pessoa. Alves me pegou nesse momento meio desprevenido – Tá falando com quem cara? – perguntou com cara de riso – Nada não – respondi – só acabei de me tocar que Deus existe.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Castelos de nuvens


Por Flávio Christo

- É bonito ver esses castelos de nuvens né Dª Vera? – falei, olhando pro topo do morro, onde às vezes a neblina escondia duas torres de rádio. As chuvas por aqui quase sempre vinham daquele lado, quando não vinha dali é porque queriam causar estragos. Dª Vera me respondeu, com olhos muito mais antigos que os meus e que olhavam agora pra dentro da memória, que quando menina, antes de toda essa tecnologia, era essa a diversão das crianças. – Papai sentava a gente no quintal, à noite, quando vinha à fresca. Quase sempre era na mudança de lua – falou, explicando que o tempo não costumava mudar na lua cheia, e que se ela tivesse começado com tempo firme, esse só mudaria junto com sua fase – a gente ficava vendo os cachorros, os jacarés, tudo que tinha desenhado no céu.
Eram 17 irmãos, vindo de quatro casamentos diferentes de seu pai – sua mãe foi a que eu mais amei – o homem sempre lhe dizia. Era a filha mais velha de seu pai e nunca chegou a conhecer a mãe que morreu de febres antigas e sem cura quando ela tinha só uns quatro anos – Minha avó falava que foi tétano, que um irmão meu morreu no útero dela e só descobriram muito tempo depois, quando ela já tava perto do fim – contava,sem mostrar tristeza – meu pai nunca confirmou isso. Na verdade, não sei direito de quê ela morreu e não me magôo porque nem foto tenho pra saber como ela era!
Era véspera de dia de ano, e tudo o que se via nela era o desanimo. Havia uma morte que a maltratava sempre a lembrança – vovó morreu na véspera do natal, fim de ano pra mim é sempre triste – explicou que era ela quem a protegia das surras e maus tratos das madrastas. Foi também a avó que lhe ensinou o cultivo de hortaliças, estávamos nos fundos de sua casa, e ela agora me mostrava a pequena horta de três canteiros, onde cultivava de tudo o que pudesse – olha ali oh, tem milho, couve, quiabo, chuchu e jiló, naquele canto ali eu planto mais é flor, olha aquelas dálias ali, eu roubei umas três sementinhas dum canteiro, olha como elas tão bonita, dando cada cacho vistoso. Vovó sempre falava que o segredo era o esterco de galinha.
O dia estava tórrido de quente, as couves, tristes de tão murchas, no que ela se justificou - é só por causa do sol, aguei elas hoje de manhã. Quando o sol descer, eu águo de novo, ai elas ficam bonitas que só. – e nisso ela não mentia. Acabou descendo as escadas, apanhando algumas folhas e insistindo que eu levasse pra provar como eram macias – isso com um angu e um feijão fresquinho, precisa nem mais nada. – Agradeci, mas disse que o bom mesmo àquela hora seria um café preto, bem forte. Não havia calor que nos tirasse o gosto pro café, meu e dela, que ela passou na hora e serviu com um pedaço de broa de fubá. Este era o tipo de tarde que eu tinha como as que eu mais descansava. As vezes precisamos de algo que nos tire do nosso tempo, que possamos imaginar coisas que não vimos, que jamais veremos. Há momentos em que somos como crianças urbanas que acham que frangos nascem nas geladeiras dos mercados e o leite brota de caixinhas. Pessoas como Dª Vera nos tiram dessa suspensão.
- A senhora faz a passagem do ano conosco? - perguntei, já na  hora de ir.  – vou não menino, vou pra roça, cuidar das minhas plantas, ouvir barulho de sapo e grilo, esses foguetes que vocês soltam me tiram o sossego. – O que senti naquele momento pode ser descrito como um sentimento inescrupuloso, mas era com a parte mais nobre de mim que eu o sentia. Era inveja. Inveja de conseguir ser tão simples, de aproveitar a vida com coisas pequenas, de conseguir extrair prazer simplesmente por ver crescer algo que você cultivou. O abraço que dei foi sincero.
- Feliz ano novo Dª Vera. – o respeito que sentia por ela era quase uma reverencia.
- Que Deus lhe abençoe rapaz! – disse, simples como sempre.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Camisa Listrada


Passou o dia de uma forma especialmente boa. Tinha acordado cedo, recebido a aposentadoria e feito compras. Depois jogou na loteria, os seis números que jogava duas vezes por semana. Voltou para a casa, almoçou a janta requentada, fez a sesta e foi para a praça jogar umas partidas de damas, céu azul, sol morno. Era o dia perfeito em sua concepção já havia um tempo. Chegou em casa, tomou um gole de café e se deitou no sofá, sorriu.
Façamos agora uma pausa. De nada adiantaria continuar essa história daqui, antes é necessária uma explicação.
Leco conhecia Guto há mais de cinquenta anos. Conheciam-se tão bem quanto a si mesmos. A diferença é que Guto sempre teve vida boa, bom estudo, fez faculdade, foi doutor. Leco, teve mãe enferma, pai que morreu cedo e vida dura para levar. Mesmo assim, jamais abriu a boca para fazer maldição por suas aflições. Era resignado.
A situação mais abastada do amigo, no entanto, nunca lhe foi confortável. Ele lhe convidava a lugares onde não sabia como se comportar, a círculos sociais que não era possível que frequentasse, dava presentes que não podia retribuir. Era, no entanto, possessivo. Ambos conheciam muito bem seus adjetivos.
Passando certa vez por uma loja roupas em pronta entrega, Leco viu a camisa mais bonita de sua vida. Era coisa simples, uma camisa de gola, com listras horizontais em azul e verde. Tão simples, tão bonita. Tratou logo de achar defeito nela quando viu o preço. Era demais por uma camisa. Mas aquilo o incomodou. Até sonhou com ela aquela noite. Estava se arrumando para ir ao baile, gomalina no cabelo perfeitamente penteado, calça de linho branco catolicamente passada, e o sapato brilhando como espelho. Mas faltava algo, foi quando se viu, vestindo a camisa e vendo em si o homem mais belo e bem arrumado dos arredores. Acordou com o coração palpitando. Seria possível uma roupa lhe causar tal sensação?
No dia seguinte não se agüentou, passou novamente em frente à loja. Sim, a roupa era de fato bonita. Foi à cafeteria, pediu um expresso. Lá encontrou Guto, no meio do café, acabou lhe contando o sonho – mas num é que é estranho compadre? – Guto respondeu – Cê nunca foi inquietado com as coisas assim. – Na volta, passaram em frente à loja, Leco mostrou a peça – É bonita de verdade – completou.
Já não se sentia mais tão bem arrumado depois de ter tido aquele sonho. Espantosamente percebeu que precisava daquela camisa, ou alguma que lhe bastasse, mas sabia que nenhuma lhe bastaria – assim que receber, vou comprar aquela roupa – pensou, mesmo sabendo que levaria quase metade do seu ordenado. No terceiro dia de sua inquietação passou novamente em frente à loja, só pra conferir se seu objeto de desejo ainda se encontrava na vitrine. Não estava mais. Sentiu um frio estranho na barriga, nunca tinha sentido coisa parecida, mas sentiu dessa vez. Aquela roupa era sua, mesmo que não a tivesse comprado.
Entrou na loja, encontrou Guto, acabando de pagar pela peça de roupa que tanto desejava. Sabia que não tinha outra peça como aquela. O amigo nem sequer notou sua presença, e ele saiu sem chamar atenção. Sentiu-se magoado. É certo que não era obrigação do amigo saber do desejo tão profundo que sentia pela roupa, mas ainda assim, aquilo era traição. No dia seguinte, não foi à cafeteria, sabia que encontraria Guto por lá, no sábado não foi jogar a partida de buraco na casa do amigo, como já era de costume, nem apareceu no almoço de domingo, quando o via na rua atravessava discretamente, e nem retornou às ligações por tanto tempo que elas pararam de acontecer.
Não via mais nele seu amigo. Como conhecia seus defeitos, sabia da necessidade de se sentir superior que Guto sempre teve, desde criança, quando não aceitava perder em uma brincadeira ou ser o ultimo em um jogo. Leco sempre cedeu, por ser mais humilde, e por não ver necessidade de se sentir superior em nenhuma dessas situações. Mas agora toda essa raiva e compreensão de todos esses anos vinham juntas, e culminaram em um ato de total exclusão. Simplesmente desapareceu, por cinco anos.
Voltamos então, para a casa de Leco, na situação que descrevemos logo no inicio. Ele estava deitado no sofá, sorrindo, com os dentes amarelos de café, quando o telefone tocou. Não precisou da pessoa do outro lado da linha se identificar para que ele soubesse de quem se tratava – Seu amigo morreu – Falou Rose. Leco desligou o telefone sem dizer palavra. Mesmo com a mágoa, sabia que deveria ir ao velório – merda, o dia tava tão bom!
- De que morreu? – perguntou à viúva – de mal do coração, não se agüentou, reclamava de dor desde cedo. Foi cochilar a sesta e não acordou mais. – respondeu. Leco sentia-se mal por não demonstrar tristeza, seus olhos estavam secos, mesmo vendo o amigo de tanto tempo dentro do esquife. – Ele sentia sua falta, não passava um dia em que não comentasse, nunca entendeu porque você sumiu – disse a mulher - Dá uma chegada aqui, quero te mostrar uma coisa.
Entrou com ela no quarto do casal, ela abriu o guarda roupa tirou um bilhete e o entregou.  – parece que sabia o que ia acontecer, escreveu isso hoje de manhã e pediu que eu te entregasse – disse - agora dá licença, tenho que fazer sala pras pessoas – a voz dela era mais magoada do que triste. Leco abriu o bilhete, um recado simples estava escrito “Abra a terceira gaveta do guarda roupa.” – era o típico metodismo de Guto se manifestando naquele recado. Quase foi embora, mas resolveu realizar aquele ultimo desejo.
Dentro da gaveta estava um único embrulho prateado, uma fita com laço vermelho e um adesivo vedando a entrada de ar. Pegou o embrulho sem saber exatamente o que fazer, por fim, abriu. O pano ainda conservava o cheiro de novidade, a etiqueta da loja ainda estava presa na camisa, e dentro do embrulho outro bilhete, também simples, escrito à mão, a letra desenhada como nos convites de casamento “finalmente um presente que sei que irá gostar, forte abraço.”.
Leco ergueu no ar a camisa listrada de azul e verde, aquela mesma camisa que viu o amigo comprar cinco anos antes, estava todo esse tempo guardada a sua espera. Vestiu, olhou-se no espelho e se sentiu completo como há muito tempo não se sentia – ela é realmente linda – pensou. Nesse mesmo instante sentiu-se enojado. Viu no espelho um monstro que não era ele. Olhou os bilhetes na mão – me desculpa – sussurrou. Retirou a camisa e a cheirou novamente. Sentou na cama do amigo. Chorou.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O difícil oficio de ser “O bom velhinho”



            Imagine a cena: Você, num calor de 38°C, de casaco, touca, botas e calças. Pois é, essa é a vida de um Papai Noel brasileiro.

             Reza a lenda que toda essa fatídica história teve inicio por volta de mil e uns quebrados, com um velhinho que  lá pelas esquinas da Finlândia, ou Islândia (ou algumas outras destas “lândias” lá da extrema ponta de cima do mundo) distribuía presentes pra pirralhada da região no natal . O negócio é que nessas “lândias”, o frio é de doer em pleno verão, mas, como no natal lá não é verão, é inverno, o frio é de lascar, e era necessária essa parafernália toda de roupa pra aguentar, sem encarangar, a tarefa de ser “O Bom Velhinho”. O negócio acabou dando certo, e o visionário incorporou pra si o slogan de “seja rico ou seja pobre o velhinho sempre vem”, caindo no gosto da garotada e fazendo da distribuição de presentes um ofício.

Tempos depois, com a descoberta de terras novas, localizadas nos trópicos, a fundação foi abrindo suas franquias. Quem se lascou nesse caso foi o Papai Noel que trabalha na filial brasileira que, como em toda outra empresa de franquia, tem um uniforme padronizado e segue os moldes indicados pela matriz. A alteração mais recente aconteceu no inicio do século passado, quando, por motivos de força maior, o uniforme mudou da cor verde para o vermelho, mas, mesmo assim nada de mudanças no tamanho.  Naquele tempo, a luta para a mudança não foi grande, apenas alguns papais Noel reivindicaram uma roupa menos desconfortável, mas como os padrões morais da época pediam roupas “sóbrias”, a luta foi natimorta e a revolução ficou pra mais tarde.

Em 1988 com a Constituição brasileira e com o medo da ditadura extinto, foi criado o SUPNB (Sindicato unificado dos papais Noel do Brasil) com o intuito de normatizar a profissão de papai noel. Mas os clientes não aceitaram, quando o primeiro bom velhinho sindicalizado apareceu de bermuda floral e camiseta, despachando os presentes via Sedex (Sedex 10 para capitais e regiões metropolitanas). Logo voltaram os antigos uniformes, o saco jogado nas costas e o calor insuportável.

Anos 90, geração saúde. A moda era ser magro e esbelto, e dessa onda os bons velhinhos profissionais não escaparam, a pior parte disso, é que as barrigas grandes e redondas são parte do figurino, e para manter essa imagem entraram em cena as espumas, que agora davam mais uma grossa camada de calor para coitado.

Com o tempo, os bons “bons velhinhos” de ofício foram morrendo, e agora já se vê até caras novos com um rosto falsamente rosados e com barba e cabelo branco postiços quebrando um galho na tarefa de distribuir presentes.

O que não entendo é como o transporte do coitado não evolui, continua sendo uma carroça puxada por renas, com tanto conversível com ar condicionado por ai ele continua com essa vida arcaica. Sua justificativa é que sua luta é pelo meio ambiente também.

Outro dia, eu sentado num bar e passou um papai Noel, ele pediu uma água de côco. Eu, abismado, quase escrevi uma cartinha num guardanapo e entreguei à ele, mas me contive e perguntei apenas:

- Essa roupa ai com esse tempo é pedreira usar né?

No que ele respondeu:

- Pra usar até que não, o problema é quando dá dor de barriga!

E acabou-se assim, o meu encanto com o natal!

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Trezentas Ave-Marias antes de dormir


“Ônibus é igual guarda-chuva, só que melhor!”.
Era dessas pessoas que tem pensamentos desconexos, ninguém entende o que dizem. Essa frase, no entanto, tinha um sentido totalmente racional, mas é desnecessário gastar linhas aqui para explicá-la. Quem souber entender que a entenda. Basta que saibam o contexto na qual ela foi criada. Um daqueles dias tão abafados que fazem a gente duvidar que existam locais frios nesse planeta. A chuva caiu de repente, a sombrinha velha o vento jogou pra longe. Chegou encharcada no ponto de ônibus. Foi então que o pensamento lhe ocorreu.

Que fique claro: todos temos pensamentos que não fazem nenhum sentido. O problema é quando nos escapam – Ontem sonhei com cangurus... – disse certa vez a uma amiga, depois de cinco minutos de um silêncio incômodo.  O silencio continuou, diante da incapacidade existente de dar uma resposta à altura para aquela afirmação.

Encharcada e suada, entrou no ônibus cheio, quente e fedido. A blusa grudava nos seios e delineava o corpo, mostrando um sexo reprimido, mas que estava ali, esperando para ser tocado - A repressão veio de criança, das afirmações da família sobre a mulher ter que se dar valor, não poder ser exibida. Pai e mãe machistas, ainda que não soubessem que o eram. –  o que para a maioria era um suplício, para ela era o momento mais esperado do dia. O cheiro de suor, o toque involuntário com as pessoas tinha algo de sensual que não lhe era compreensível. O calor que sentia já não era mais da temperatura, mas então, de onde vinha? – É uma coisa que veio me subindo aqui pelas partes, me arrupiou o pescoço... – disse mais tarde ao padre. Não podia conceber ter aquelas sensações e não se confessar depois.

Mesmo que excitado com a história o padre a fez penitência, ela catolicamente pagou, com 50 Padre Nosso e 100 Ave-Marias, além de pagar o dízimo em dobro. Enquanto rezava em voz alta – ajoelhada no milho, como pagamento extra por aquilo que não teve coragem de confessar e não admitia nem pra si mesma - seus pensamentos iam e vinham, um turbilhão constante. Centenas de imagens de uma única vez. Um homem alto no ônibus, ombros largos, barba por fazer, que encostou as costas suadas nas suas, o contato foi elétrico. Ao mesmo tempo viu os peitos da mulher que estava sentada a sua frente, redondos, grandes, macios e com uma suave pelugem, balançavam suavemente junto com as suspensões do veiculo. Aquilo lhe rendeu um conjunto erótico memorável que, junto com o cheiro de gente suada, a fazia sussurrar  - perdoa Deus, perdoa eu. Tira essas imagem do Demo da minha cabeça – pobre diabo, culpa alguma tinha.

Jamais entendeu a diferença entre simples e simplória, e por isso se humilhava constantemente na tentativa de se mostrar humilde.  – lembra de mim? Joãzinho, filho da Mariinha que morava lá perto da sua casa. Lembra? – Lhe diziam os camelôs. Ela sempre acreditava. Na verdade caia nessa lábia mais por um papel social do que por acreditar. Nunca se lembrou de João ou Maria alguma, mas aprendeu a acreditar nas pessoas, e por isso acreditava.

Seria uma santa para todos que a vissem, apenas ela não se acreditava santa – essas coisa que fico imaginando, isso num é coisa de santo não – dizia sem pensar que todos seus santos provavelmente pensaram coisas parecidas. Certa noite, acabou que se atrasou para chegar em casa. Uma colega de trabalho insistiu o dia todo para que participasse de uma festa sua de noivado. Lá sentiu pela primeira vez o gosto do álcool. Tomou sem saber, enganada por um copo de suco. Sentiu a leveza de não ser apenas o que lhe mandavam. Um rapaz sentou ao seu lado, tinha cheiro de madeira e voz macia. Era demais para aquela situação. Se imaginou instantaneamente de branco, com véu e grinalda, e casada com aquele cheiro. O toque sutil em seu ombro fez um estremecimento passar por todo o corpo. Estava experimentando a magia adolescente na iminência dos quarenta anos. Quase a invejo, agora vejo que é privilegiada.

Não sabe ao certo o momento em que levantou do sofá e acompanhou o cheiro de madeira até uma parte de fora da casa. Andou timidamente de encontro a um corpo duro, sólido, que a abraçou como se fosse uma criança. Jamais soube como se beijava, mas no momento do beijo, simplesmente se beija, não é necessário um aprendizado anterior. É dessas coisas que vem na nossa pré-programação. Já agora entendia o calor. Sim, era esse o calor que sentia no ônibus, ou quando via um outdoor de biquínis, ou lembrava daqueles peitos balançando. Era esse calor que a mantinha acordada, e que fazia suar um suor pegajoso entre as pernas, esse era o calor que a fazia se confessar ao padre...

A lembrança do padre desfez o torpor. Correu pra casa, jogou milho no chão, quebrou um copo, ajoelho sobre a mistura de cacos de vidro e cereal. Enrolou o rosário na mão e rezou duzentas Ave-Marias.