domingo, 30 de dezembro de 2012

Castelos de nuvens


Por Flávio Christo

- É bonito ver esses castelos de nuvens né Dª Vera? – falei, olhando pro topo do morro, onde às vezes a neblina escondia duas torres de rádio. As chuvas por aqui quase sempre vinham daquele lado, quando não vinha dali é porque queriam causar estragos. Dª Vera me respondeu, com olhos muito mais antigos que os meus e que olhavam agora pra dentro da memória, que quando menina, antes de toda essa tecnologia, era essa a diversão das crianças. – Papai sentava a gente no quintal, à noite, quando vinha à fresca. Quase sempre era na mudança de lua – falou, explicando que o tempo não costumava mudar na lua cheia, e que se ela tivesse começado com tempo firme, esse só mudaria junto com sua fase – a gente ficava vendo os cachorros, os jacarés, tudo que tinha desenhado no céu.
Eram 17 irmãos, vindo de quatro casamentos diferentes de seu pai – sua mãe foi a que eu mais amei – o homem sempre lhe dizia. Era a filha mais velha de seu pai e nunca chegou a conhecer a mãe que morreu de febres antigas e sem cura quando ela tinha só uns quatro anos – Minha avó falava que foi tétano, que um irmão meu morreu no útero dela e só descobriram muito tempo depois, quando ela já tava perto do fim – contava,sem mostrar tristeza – meu pai nunca confirmou isso. Na verdade, não sei direito de quê ela morreu e não me magôo porque nem foto tenho pra saber como ela era!
Era véspera de dia de ano, e tudo o que se via nela era o desanimo. Havia uma morte que a maltratava sempre a lembrança – vovó morreu na véspera do natal, fim de ano pra mim é sempre triste – explicou que era ela quem a protegia das surras e maus tratos das madrastas. Foi também a avó que lhe ensinou o cultivo de hortaliças, estávamos nos fundos de sua casa, e ela agora me mostrava a pequena horta de três canteiros, onde cultivava de tudo o que pudesse – olha ali oh, tem milho, couve, quiabo, chuchu e jiló, naquele canto ali eu planto mais é flor, olha aquelas dálias ali, eu roubei umas três sementinhas dum canteiro, olha como elas tão bonita, dando cada cacho vistoso. Vovó sempre falava que o segredo era o esterco de galinha.
O dia estava tórrido de quente, as couves, tristes de tão murchas, no que ela se justificou - é só por causa do sol, aguei elas hoje de manhã. Quando o sol descer, eu águo de novo, ai elas ficam bonitas que só. – e nisso ela não mentia. Acabou descendo as escadas, apanhando algumas folhas e insistindo que eu levasse pra provar como eram macias – isso com um angu e um feijão fresquinho, precisa nem mais nada. – Agradeci, mas disse que o bom mesmo àquela hora seria um café preto, bem forte. Não havia calor que nos tirasse o gosto pro café, meu e dela, que ela passou na hora e serviu com um pedaço de broa de fubá. Este era o tipo de tarde que eu tinha como as que eu mais descansava. As vezes precisamos de algo que nos tire do nosso tempo, que possamos imaginar coisas que não vimos, que jamais veremos. Há momentos em que somos como crianças urbanas que acham que frangos nascem nas geladeiras dos mercados e o leite brota de caixinhas. Pessoas como Dª Vera nos tiram dessa suspensão.
- A senhora faz a passagem do ano conosco? - perguntei, já na  hora de ir.  – vou não menino, vou pra roça, cuidar das minhas plantas, ouvir barulho de sapo e grilo, esses foguetes que vocês soltam me tiram o sossego. – O que senti naquele momento pode ser descrito como um sentimento inescrupuloso, mas era com a parte mais nobre de mim que eu o sentia. Era inveja. Inveja de conseguir ser tão simples, de aproveitar a vida com coisas pequenas, de conseguir extrair prazer simplesmente por ver crescer algo que você cultivou. O abraço que dei foi sincero.
- Feliz ano novo Dª Vera. – o respeito que sentia por ela era quase uma reverencia.
- Que Deus lhe abençoe rapaz! – disse, simples como sempre.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Camisa Listrada


Passou o dia de uma forma especialmente boa. Tinha acordado cedo, recebido a aposentadoria e feito compras. Depois jogou na loteria, os seis números que jogava duas vezes por semana. Voltou para a casa, almoçou a janta requentada, fez a sesta e foi para a praça jogar umas partidas de damas, céu azul, sol morno. Era o dia perfeito em sua concepção já havia um tempo. Chegou em casa, tomou um gole de café e se deitou no sofá, sorriu.
Façamos agora uma pausa. De nada adiantaria continuar essa história daqui, antes é necessária uma explicação.
Leco conhecia Guto há mais de cinquenta anos. Conheciam-se tão bem quanto a si mesmos. A diferença é que Guto sempre teve vida boa, bom estudo, fez faculdade, foi doutor. Leco, teve mãe enferma, pai que morreu cedo e vida dura para levar. Mesmo assim, jamais abriu a boca para fazer maldição por suas aflições. Era resignado.
A situação mais abastada do amigo, no entanto, nunca lhe foi confortável. Ele lhe convidava a lugares onde não sabia como se comportar, a círculos sociais que não era possível que frequentasse, dava presentes que não podia retribuir. Era, no entanto, possessivo. Ambos conheciam muito bem seus adjetivos.
Passando certa vez por uma loja roupas em pronta entrega, Leco viu a camisa mais bonita de sua vida. Era coisa simples, uma camisa de gola, com listras horizontais em azul e verde. Tão simples, tão bonita. Tratou logo de achar defeito nela quando viu o preço. Era demais por uma camisa. Mas aquilo o incomodou. Até sonhou com ela aquela noite. Estava se arrumando para ir ao baile, gomalina no cabelo perfeitamente penteado, calça de linho branco catolicamente passada, e o sapato brilhando como espelho. Mas faltava algo, foi quando se viu, vestindo a camisa e vendo em si o homem mais belo e bem arrumado dos arredores. Acordou com o coração palpitando. Seria possível uma roupa lhe causar tal sensação?
No dia seguinte não se agüentou, passou novamente em frente à loja. Sim, a roupa era de fato bonita. Foi à cafeteria, pediu um expresso. Lá encontrou Guto, no meio do café, acabou lhe contando o sonho – mas num é que é estranho compadre? – Guto respondeu – Cê nunca foi inquietado com as coisas assim. – Na volta, passaram em frente à loja, Leco mostrou a peça – É bonita de verdade – completou.
Já não se sentia mais tão bem arrumado depois de ter tido aquele sonho. Espantosamente percebeu que precisava daquela camisa, ou alguma que lhe bastasse, mas sabia que nenhuma lhe bastaria – assim que receber, vou comprar aquela roupa – pensou, mesmo sabendo que levaria quase metade do seu ordenado. No terceiro dia de sua inquietação passou novamente em frente à loja, só pra conferir se seu objeto de desejo ainda se encontrava na vitrine. Não estava mais. Sentiu um frio estranho na barriga, nunca tinha sentido coisa parecida, mas sentiu dessa vez. Aquela roupa era sua, mesmo que não a tivesse comprado.
Entrou na loja, encontrou Guto, acabando de pagar pela peça de roupa que tanto desejava. Sabia que não tinha outra peça como aquela. O amigo nem sequer notou sua presença, e ele saiu sem chamar atenção. Sentiu-se magoado. É certo que não era obrigação do amigo saber do desejo tão profundo que sentia pela roupa, mas ainda assim, aquilo era traição. No dia seguinte, não foi à cafeteria, sabia que encontraria Guto por lá, no sábado não foi jogar a partida de buraco na casa do amigo, como já era de costume, nem apareceu no almoço de domingo, quando o via na rua atravessava discretamente, e nem retornou às ligações por tanto tempo que elas pararam de acontecer.
Não via mais nele seu amigo. Como conhecia seus defeitos, sabia da necessidade de se sentir superior que Guto sempre teve, desde criança, quando não aceitava perder em uma brincadeira ou ser o ultimo em um jogo. Leco sempre cedeu, por ser mais humilde, e por não ver necessidade de se sentir superior em nenhuma dessas situações. Mas agora toda essa raiva e compreensão de todos esses anos vinham juntas, e culminaram em um ato de total exclusão. Simplesmente desapareceu, por cinco anos.
Voltamos então, para a casa de Leco, na situação que descrevemos logo no inicio. Ele estava deitado no sofá, sorrindo, com os dentes amarelos de café, quando o telefone tocou. Não precisou da pessoa do outro lado da linha se identificar para que ele soubesse de quem se tratava – Seu amigo morreu – Falou Rose. Leco desligou o telefone sem dizer palavra. Mesmo com a mágoa, sabia que deveria ir ao velório – merda, o dia tava tão bom!
- De que morreu? – perguntou à viúva – de mal do coração, não se agüentou, reclamava de dor desde cedo. Foi cochilar a sesta e não acordou mais. – respondeu. Leco sentia-se mal por não demonstrar tristeza, seus olhos estavam secos, mesmo vendo o amigo de tanto tempo dentro do esquife. – Ele sentia sua falta, não passava um dia em que não comentasse, nunca entendeu porque você sumiu – disse a mulher - Dá uma chegada aqui, quero te mostrar uma coisa.
Entrou com ela no quarto do casal, ela abriu o guarda roupa tirou um bilhete e o entregou.  – parece que sabia o que ia acontecer, escreveu isso hoje de manhã e pediu que eu te entregasse – disse - agora dá licença, tenho que fazer sala pras pessoas – a voz dela era mais magoada do que triste. Leco abriu o bilhete, um recado simples estava escrito “Abra a terceira gaveta do guarda roupa.” – era o típico metodismo de Guto se manifestando naquele recado. Quase foi embora, mas resolveu realizar aquele ultimo desejo.
Dentro da gaveta estava um único embrulho prateado, uma fita com laço vermelho e um adesivo vedando a entrada de ar. Pegou o embrulho sem saber exatamente o que fazer, por fim, abriu. O pano ainda conservava o cheiro de novidade, a etiqueta da loja ainda estava presa na camisa, e dentro do embrulho outro bilhete, também simples, escrito à mão, a letra desenhada como nos convites de casamento “finalmente um presente que sei que irá gostar, forte abraço.”.
Leco ergueu no ar a camisa listrada de azul e verde, aquela mesma camisa que viu o amigo comprar cinco anos antes, estava todo esse tempo guardada a sua espera. Vestiu, olhou-se no espelho e se sentiu completo como há muito tempo não se sentia – ela é realmente linda – pensou. Nesse mesmo instante sentiu-se enojado. Viu no espelho um monstro que não era ele. Olhou os bilhetes na mão – me desculpa – sussurrou. Retirou a camisa e a cheirou novamente. Sentou na cama do amigo. Chorou.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O difícil oficio de ser “O bom velhinho”



            Imagine a cena: Você, num calor de 38°C, de casaco, touca, botas e calças. Pois é, essa é a vida de um Papai Noel brasileiro.

             Reza a lenda que toda essa fatídica história teve inicio por volta de mil e uns quebrados, com um velhinho que  lá pelas esquinas da Finlândia, ou Islândia (ou algumas outras destas “lândias” lá da extrema ponta de cima do mundo) distribuía presentes pra pirralhada da região no natal . O negócio é que nessas “lândias”, o frio é de doer em pleno verão, mas, como no natal lá não é verão, é inverno, o frio é de lascar, e era necessária essa parafernália toda de roupa pra aguentar, sem encarangar, a tarefa de ser “O Bom Velhinho”. O negócio acabou dando certo, e o visionário incorporou pra si o slogan de “seja rico ou seja pobre o velhinho sempre vem”, caindo no gosto da garotada e fazendo da distribuição de presentes um ofício.

Tempos depois, com a descoberta de terras novas, localizadas nos trópicos, a fundação foi abrindo suas franquias. Quem se lascou nesse caso foi o Papai Noel que trabalha na filial brasileira que, como em toda outra empresa de franquia, tem um uniforme padronizado e segue os moldes indicados pela matriz. A alteração mais recente aconteceu no inicio do século passado, quando, por motivos de força maior, o uniforme mudou da cor verde para o vermelho, mas, mesmo assim nada de mudanças no tamanho.  Naquele tempo, a luta para a mudança não foi grande, apenas alguns papais Noel reivindicaram uma roupa menos desconfortável, mas como os padrões morais da época pediam roupas “sóbrias”, a luta foi natimorta e a revolução ficou pra mais tarde.

Em 1988 com a Constituição brasileira e com o medo da ditadura extinto, foi criado o SUPNB (Sindicato unificado dos papais Noel do Brasil) com o intuito de normatizar a profissão de papai noel. Mas os clientes não aceitaram, quando o primeiro bom velhinho sindicalizado apareceu de bermuda floral e camiseta, despachando os presentes via Sedex (Sedex 10 para capitais e regiões metropolitanas). Logo voltaram os antigos uniformes, o saco jogado nas costas e o calor insuportável.

Anos 90, geração saúde. A moda era ser magro e esbelto, e dessa onda os bons velhinhos profissionais não escaparam, a pior parte disso, é que as barrigas grandes e redondas são parte do figurino, e para manter essa imagem entraram em cena as espumas, que agora davam mais uma grossa camada de calor para coitado.

Com o tempo, os bons “bons velhinhos” de ofício foram morrendo, e agora já se vê até caras novos com um rosto falsamente rosados e com barba e cabelo branco postiços quebrando um galho na tarefa de distribuir presentes.

O que não entendo é como o transporte do coitado não evolui, continua sendo uma carroça puxada por renas, com tanto conversível com ar condicionado por ai ele continua com essa vida arcaica. Sua justificativa é que sua luta é pelo meio ambiente também.

Outro dia, eu sentado num bar e passou um papai Noel, ele pediu uma água de côco. Eu, abismado, quase escrevi uma cartinha num guardanapo e entreguei à ele, mas me contive e perguntei apenas:

- Essa roupa ai com esse tempo é pedreira usar né?

No que ele respondeu:

- Pra usar até que não, o problema é quando dá dor de barriga!

E acabou-se assim, o meu encanto com o natal!

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Trezentas Ave-Marias antes de dormir


“Ônibus é igual guarda-chuva, só que melhor!”.
Era dessas pessoas que tem pensamentos desconexos, ninguém entende o que dizem. Essa frase, no entanto, tinha um sentido totalmente racional, mas é desnecessário gastar linhas aqui para explicá-la. Quem souber entender que a entenda. Basta que saibam o contexto na qual ela foi criada. Um daqueles dias tão abafados que fazem a gente duvidar que existam locais frios nesse planeta. A chuva caiu de repente, a sombrinha velha o vento jogou pra longe. Chegou encharcada no ponto de ônibus. Foi então que o pensamento lhe ocorreu.

Que fique claro: todos temos pensamentos que não fazem nenhum sentido. O problema é quando nos escapam – Ontem sonhei com cangurus... – disse certa vez a uma amiga, depois de cinco minutos de um silêncio incômodo.  O silencio continuou, diante da incapacidade existente de dar uma resposta à altura para aquela afirmação.

Encharcada e suada, entrou no ônibus cheio, quente e fedido. A blusa grudava nos seios e delineava o corpo, mostrando um sexo reprimido, mas que estava ali, esperando para ser tocado - A repressão veio de criança, das afirmações da família sobre a mulher ter que se dar valor, não poder ser exibida. Pai e mãe machistas, ainda que não soubessem que o eram. –  o que para a maioria era um suplício, para ela era o momento mais esperado do dia. O cheiro de suor, o toque involuntário com as pessoas tinha algo de sensual que não lhe era compreensível. O calor que sentia já não era mais da temperatura, mas então, de onde vinha? – É uma coisa que veio me subindo aqui pelas partes, me arrupiou o pescoço... – disse mais tarde ao padre. Não podia conceber ter aquelas sensações e não se confessar depois.

Mesmo que excitado com a história o padre a fez penitência, ela catolicamente pagou, com 50 Padre Nosso e 100 Ave-Marias, além de pagar o dízimo em dobro. Enquanto rezava em voz alta – ajoelhada no milho, como pagamento extra por aquilo que não teve coragem de confessar e não admitia nem pra si mesma - seus pensamentos iam e vinham, um turbilhão constante. Centenas de imagens de uma única vez. Um homem alto no ônibus, ombros largos, barba por fazer, que encostou as costas suadas nas suas, o contato foi elétrico. Ao mesmo tempo viu os peitos da mulher que estava sentada a sua frente, redondos, grandes, macios e com uma suave pelugem, balançavam suavemente junto com as suspensões do veiculo. Aquilo lhe rendeu um conjunto erótico memorável que, junto com o cheiro de gente suada, a fazia sussurrar  - perdoa Deus, perdoa eu. Tira essas imagem do Demo da minha cabeça – pobre diabo, culpa alguma tinha.

Jamais entendeu a diferença entre simples e simplória, e por isso se humilhava constantemente na tentativa de se mostrar humilde.  – lembra de mim? Joãzinho, filho da Mariinha que morava lá perto da sua casa. Lembra? – Lhe diziam os camelôs. Ela sempre acreditava. Na verdade caia nessa lábia mais por um papel social do que por acreditar. Nunca se lembrou de João ou Maria alguma, mas aprendeu a acreditar nas pessoas, e por isso acreditava.

Seria uma santa para todos que a vissem, apenas ela não se acreditava santa – essas coisa que fico imaginando, isso num é coisa de santo não – dizia sem pensar que todos seus santos provavelmente pensaram coisas parecidas. Certa noite, acabou que se atrasou para chegar em casa. Uma colega de trabalho insistiu o dia todo para que participasse de uma festa sua de noivado. Lá sentiu pela primeira vez o gosto do álcool. Tomou sem saber, enganada por um copo de suco. Sentiu a leveza de não ser apenas o que lhe mandavam. Um rapaz sentou ao seu lado, tinha cheiro de madeira e voz macia. Era demais para aquela situação. Se imaginou instantaneamente de branco, com véu e grinalda, e casada com aquele cheiro. O toque sutil em seu ombro fez um estremecimento passar por todo o corpo. Estava experimentando a magia adolescente na iminência dos quarenta anos. Quase a invejo, agora vejo que é privilegiada.

Não sabe ao certo o momento em que levantou do sofá e acompanhou o cheiro de madeira até uma parte de fora da casa. Andou timidamente de encontro a um corpo duro, sólido, que a abraçou como se fosse uma criança. Jamais soube como se beijava, mas no momento do beijo, simplesmente se beija, não é necessário um aprendizado anterior. É dessas coisas que vem na nossa pré-programação. Já agora entendia o calor. Sim, era esse o calor que sentia no ônibus, ou quando via um outdoor de biquínis, ou lembrava daqueles peitos balançando. Era esse calor que a mantinha acordada, e que fazia suar um suor pegajoso entre as pernas, esse era o calor que a fazia se confessar ao padre...

A lembrança do padre desfez o torpor. Correu pra casa, jogou milho no chão, quebrou um copo, ajoelho sobre a mistura de cacos de vidro e cereal. Enrolou o rosário na mão e rezou duzentas Ave-Marias.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A rotina do velho Amâncio


Há dois meses que aquela dor de estômago o afligia. Era uma queimação que começava de manhã, logo após o primeiro gole de café preto que, apesar da dor que vinha lhe causando, bebia rigorosamente todos os dias às seis e meia – mamãe viveu 98 anos sem ter conhecido um médico – dizia sempre que a esposa insistia em chamar o doutor da cidade.
Se tivesse que defini-lo em um adjetivo seria “turrão”. O máximo da modernidade que conheceu foi no tempo em que trabalhou nas bombas d’água da companhia de saneamento. Batia no peito orgulhosamente, sempre dizendo que, se não fosse ele, não haveria água encanada nas casas. Na verdade, não havia. A modernidade só chegou a uns 25 ou 30 mais afortunados, apenas aos que tinham dinheiro que chegasse para tanto, coisa que ele mesmo não possuía. O restante se virava na divisão de poços cavados à mão, com liquido que brotava do barro, às vezes vinha mais terra do que água.
Dona Beata, sua dona, não passava um dia sem reclamar das dores nas costas que o ir e vir de baldes a vida toda lhe causou. Nenhum medicamento do mundo lhe bastava – começa aqui perto da bunda e sobe até perto das costelas – repetia fazendo careta.  Ele então ia ao quintal, fazia um emplasto de arnica com álcool de cana (receita que aprendeu com a avó benzedeira) e esfregava nas suas costas até esquentar, ela deitava por meia hora, mas era o máximo que conseguia – Fica de repouso mulher, parece que tem formigas no rabo – esbravejava. – Não dá – respondia – sinto gastura de ficar deitada. – Quarenta e cinco anos ouvindo a mesma resposta já a tinha transformado em uma rotina que não o machucava mais.
Hoje, no entanto, o dia nasceu diferente. A dor no estômago já estava com ele antes mesmo do café preto, ficou como herança de ontem. Além dela vinha um mal estar no corpo que lhe dava náuseas, os ossos rangiam como uma porta velha, e dor atrás dos olhos, qualquer luz machucava. 72 anos de rotina foram quebrados por causa desse conjunto de males. Ao invés do café, pediu um copo de água fresca. Como não passou, arrancou na horta um pouco de capim limão e fez chá sem açúcar, depois disso deitou na rede. Adormeceu. Beata tinha saído pra comprar o peixe de sexta - promessa feita há muito tempo, para o caso do filho prematuro vingar, às sextas não comeria carne vermelha. O filho vingou, mas acabou por morrer cedo, a promessa, no entanto, continuava a ser cumprida “em dívida com santo não se brinca” dizia sempre ao almoçar sardinha – Quando voltou, o encontrou a rede, as mãos há muito cobertas de pintas pretas, caída mole em direção ao chão. Quase teve um troço.
Notícia ruim corre rápido. Menos de uma hora e o médico já estava em sua casa, pediu a um vizinho que o ajudasse a transportar o paciente pra cama. Desacordado estava, e assim ficou por umas boas três horas ainda. Quando acordou viu o homem de roupa branca conversando com Beata, demorou uns dois minutos pra ter total consciência do que via ao redor. O homem entregava dois frascos marrons a ela, sabia o que via, só não conseguia entender o que falavam. A notícia da doença veio pouco depois  - pode ser gastrite, ulcera, ou coisa pior. Seria bom se fossemos ao hospital da capital examinar isso direito. – explicou o doutor – à merda que eu vou! – retrucou. O médico ignorou a grosseria e dirigiu-se à Dona Beata – ligarei para a capital, vou ver se enviam um carro, amanhã o transferimos pro pronto socorro. Por enquanto, dê os remédios para lhe aliviar a dor, e o mantenha repousado – concluiu.
 Quando Beata voltou ao quarto, o marido já havia adormecido de novo, nem sequer teve tempo de lhe dar o analgésico. Dessa vez o sono foi mais longo, acordou só lá pelas seis, se queixando que a dor estava insuportável – toma o tônico, Amâncio – implorou a mulher.  – Não tomarei merda nenhuma.  – respondeu magoado - Tudo o que sempre te disse é que não queria ir a médico nenhum, de tudo o que poderia ter pedido, foi só isso que eu insisti. Será que nem isso você poderia respeitar? – sentia-se impotente, deitado na cama, com os ossos doendo, e sem conseguir levantar – traz o penico – gritou.
Pouco depois ouviu o som de uma galinha sendo degolada, Beata preparou uma canja, e lhe serviu um prato bem quente, do jeito que ele gostava. Mas a boca amargava, nenhum tempero mudava isso. Forçou-se a comer de qualquer forma. Sentia-se fraco, sabia que precisava da sopa, mas cada colherada parecia uma dose de ácido quando batia no estômago – saco – xingou, quando a dor não lhe permitia mais ser escondida. Mais tarde veio a febre, um estremecimento frio passando pelo corpo, uma gota gelada de suor que desceu pelo veio da coluna. Beata havia acendido duas velas no altar do quarto, ajoelhada e com um terço na mão, rezava à Nossa Senhora Aparecida e à São Judas Tadeu. Isso quase o aborreceu - minha causa não é tão impossível – pensou.
Quando a dor já se mostrava insuportável, cedeu, ainda que se fingisse forçado, a tomar uma colher do tônico.  Outra vez o amargo, mas desconfiava que agora esse era o gosto real do liquido. Pouco depois já delirava. Jurava ter visto a mãe entrar no quarto, não a sua mãe velha, mas a lembrança que tinha dela de quando ainda era um moleque. Veio de camisola branca engomada, cheirinho de alfazema.  – queria muito comer um bolinho de chuva – disse à ela, mas a ilusão já havia passado, e só o que enxergou foi o rosto atônito da esposa.  Pediu água. O tônico não havia feito efeito. 20 anos de abstinência estavam à prova naquele momento – Daria tudo por um gole de cachaça – sentiu a queimação aumentar no estômago, começou a lhe subir pelo esôfago. Em outro delírio, viu seu filho lhe segurar pelo braço, sentiu marejar os olhos.  – Isso foi por que não tomei meu café essa manhã – ainda não suportava a ideia de ter quebrado a rotina. A queimação continuou a subir, agora chegava à garganta. Pôs a mão em frente à boca pra abafar um arroto que saiu meio abafado, meio soprado. Foi esse seu ultimo suspiro.