quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Meados da década de 1950


Na manhã em que acordou para seu fatídico fim, Roberval fez tudo como fazia normalmente. Tomou seu café com uma fatia de queijo minas, tratou das galinhas e dos cães. Desceu pra horta. Não sabia e nem haveria de saber que naquele mesmo dia morreria de uma forma tão espetacular que o faria ser lembrado por anos como o Cristo do interior. Como um homem que soube morrer.
Dias antes estava preparando a cerca, um jegue havia descido a ribanceira descontrolado e arrebentado parte dela. Carecia de ser arrumada. Um mourão de eucalipto a cada metro e meio, e um arame tão bem esticado que dava pra tirar nota musical dependendo do toque que se dava. Única raiva que sentia era ter que cavar a terra molhada e pesada, culpa da incessante chuva de cinco dias. Não tinha jeito, era trabalho que não podia esperar, senão as vacas comiam toda a plantação. Como poderia saber que, por ironia, estava armando ele a própria armadilha, fadando a si mesmo ao fim prematuro?
Havia acabado de completar 33 anos, trabalhava com a terra desde que se entendia por gente. Nunca foi homem de cidade, preferia o cheiro de mato, a textura do barro. A mulher que tinha delírios de modernidade. Certa vez cismou de ir no vilarejo assistir a moda da época, um cinema itinerante que ficaria apenas um dia por ali, talvez nunca mais voltasse. “Falam que eles colocam as pessoas numa tela branca, é como se tivesse tirado um monte de foto, só que as fotos se mexem” “foto se mexendo? Isso não pode ser coisa de Deus não. Não vamos” ponto final.
Sua plantação ficava a quase dois quilômetros de casa, numa outra parte da fazenda em que vivia como colono. Mesmo sem noção política, nunca entendeu essa injustiça “é muita terra pra pouca gente”. No caminho, passava pela casa do dono. Um casarão branco, com janelas de madeira e alicerces pintados de azul turquesa, um verdadeiro primor. Mesmo não achando justo, sempre aprendeu a não cobiçar as coisas do próximo, e por isso não cobiçava, mas também não o amava.
 Apesar de arranjado, teve um casamento feliz. Sempre que saia de casa, via a esposa ainda ao longo da estrada, e sempre que olhava pra trás, ela estava na porta, pronta pra lhe acenar um tchau com a mão e com o coração apertado por vê-lo ir. Na porta continuava até que ele virasse a curva. Naquela manhã, ela tinha aconselhado que não saísse de casa, pois a chuva não lhe deixaria trabalhar. Sempre foi teimoso, nunca conseguiu ficar preso Depois do café, foi para a plantação, como sempre. Na virada da virada da curva, deu seu ultimo aceno.
Tinha a mania de conversar com as plantas, adorava ver uma semente crescer. Não que acreditasse que as plantas ouvissem, mas era terapêutico fazê-lo. Tinha apreço particular por um pé de mexerica, com sete anos de idade, que florescia todo mês de maio, dando tanto fruto que entortava os galhos.  Adubou a terra, arou um canteiro, plantou cenouras, colheu couve.  Almoçou a marmita. A terra continuava molhada e escorregadia. Parte da plantação era em um local com morro, onde a parte mais baixa acabava na cerca recém reformada. Voltou àquele ponto, continuou a colheita.
Não, não há, nem nunca existirá, uma premonição da morte. Não há anjos que o avisem que em instantes você estará inerte. Não há sinos que toquem. Jamais houve, e se houve, jamais saberemos a verdadeira versão destas histórias. A verdade é que Roberval capinava o canteiro, recolhendo erva daninha como em qualquer outro momento poderia estar fazendo, e se abaixou para retirar com a mão uma raiz mais difícil como sempre fazia e lentamente escorregou em uma folha de couve molhada que havia no chão. Escorregou inocentemente, sem sequer usar as mãos como apoio, batendo com força o rosto na enxada. Com sangue escorrendo pelos olhos, viu o mundo começar a girar e entendeu que estava rolando ladeira abaixo. Em um relance de visão, viu a cerca se aproximando, inevitavelmente se chocaria com ela, e foi nesse momento que percebeu que inexoravelmente estava morto. Notem que não foi premonição e sim, simples dedução.
Bateu de costas num mourão que rachou, soltando uma lasca que lhe atravessou o peito. Os braços ficaram abertos, a camisa de moletom grudou no arame farpado e os manteve dessa forma. Sobreviveu apenas o suficiente pra entender que não havia transcendência alguma. Que a vida poderia tanto existir, como não existir. Era apenas uma questão de instante. Num instante você é, no outro não é mais. Simples assim. Foi encontrado apenas no dia seguinte, pela esposa horrorizada. Ela veio lhe procurar por não ter voltado para a casa no dia anterior. Guardou o luto para o resto da vida.
Ninguém sabe precisar ao certo a data em que ocorreu. A lembrança exata se esvaiu com o tempo. O que se sabe é que o mourão foi substituído por uma cruz branca e alta. Na fazenda, até hoje conta-se a história, mas já há nela ares de lenda. Alguns dizem até que é possível vê-lo na horta em algumas ocasiões. Mas isso é o que acontece com os mitos, com as pessoas que sabem morrer, que morrem de forma grandiosa: Viram histórias fantásticas.  A semelhança com Cristo quase lhe rendeu cultos entre os colonos. Diziam que seria a salvação deles. Foi quase, o culto não ocorreu. Roberval no entanto atingiu fama que jamais pensou em conquistar em vida, na verdade, jamais pensou no que seria fama.  Nasceu, cresceu e morreu como um homem da terra.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Fim de setembro


Por Flávio Christo
Tentei achar outros termos pra descrever minha situação. Fui dos mais chulos aos mais requintados, mas nada demonstrava melhor o que eu queria dizer do falar que:
- Eu estava fodido! Inexorável e irremediavelmente na merda.
A semana começou com a segunda feira quente, compensando toda a chuva que caiu na folga. Meu cachorro ficou doente, cagou a casa toda. Minha vizinha de baixo reclamou do cheiro e do choro. Recebi uma multa de condomínio. Por ficar limpando a casa, mal dormi durante a noite, o dia de trabalho por isso não rendeu.  À noite, na faculdade, cochilei durante a aula. Cheguei em casa e tudo estava cagado de novo. Repete o ciclo na terça.
Ao fim da semana não consegui bater minha meta, por causa disso, a promoção que eu esperava não veio e foi dada ao cara mais canastrão de todos. Aquele que ganha mérito no serviço da gente. Pra piorar, na sexta feira teve prova, que eu não sabia da existência porque dormi na aula, e não sabia a matéria pelo mesmo motivo. Resumindo, me ferrei.
No domingo fui à casa da minha mãe, precisava de colo, de sossego e de um lugar pra deixar o cachorro correr. Não agüentava mais ele latindo no apartamento.  Mas eu acho que, se existe, em alguma instância, em algum lugar, de alguma forma, algo que controle a sorte de uma pessoa, a que deveria controlar a minha vida estava em coma.  Começou a chover, meu cachorro ficou preso do outro lado do quintal. Minha mãe ao ir buscá-lo, caiu e quebrou a perna, no caminho pro hospital, bati o carro.
Parece exagero, falando tudo assim resumido, uma coisa atrás da outra. Mas é que desgraça, quando reunida, parece sempre mais volumosa. Nunca fui de crendices, mas depois dessa semana eu resolvi apelar pra alguma coisa. Dei uma chegada num centro de umbanda perto de casa e pedi proteção, comunguei na igreja, jejuei e tomei um passe espírita. Tentei de tudo que pudesse me tirar da maré. No dia seguinte, minha namorada terminou comigo. Perdi o emprego. Resumo: Multa de condomínio, remédio pro cachorro, mãe com perna quebrada, dente faltando – resultado da batida – ferro na faculdade, sem namorada e sem emprego. Isso em sete dias corridos, nem foram dias úteis.
O relógio bateu sete horas e eu acordei mais pelo hábito que pela obrigação. A idéia de estar desempregado ainda não tinha fixado na mente. De qualquer forma lembrar que poderia dormir um pouco mais me fez sorrir. Deitei, não consegui fechar os olhos de novo. Levantei. Fui para o computador e fiz um currículo caprichado. Enviei pra umas dez empresas. Esperei. O dinheiro foi acabando, a paciência, a comida. Ah sim, já tinha dentes de novo, gastei o seguro desemprego arrumando  -  O cachorro finalmente parou de cagar em tudo – pelo menos a casa já não cheirava tão mal. Minha mãe ligou – ta tudo bem mãe/ e a perna, melhorou? – não queria dizer pra ela a merda em que eu me encontrava.  A perna pelo menos melhorava. Agora faltavam só dois meses de pinos. Depois cirurgia e fisioterapia. De alguma forma me sentia culpado pela perna dela, primeiro porque foi o meu cachorro que estava preso no quintal, segundo porque foi culpa da minha maré de falta de sorte (descobri que falar azar dá azar - ops).
Comi a ultima banana da fruteira. A lata de arroz tava quase vazia. Mamãe precisava saber. Quatro reais no bolso. Era a passagem de ônibus apenas. Ida e volta. O ponto era em frente à uma casa lotérica. O vendedor falou – é burro na cabeça. 0912, milhar boa, vai uma ai? – aquilo era ultrajante. O bilhete custava dois reais, o preço da passagem de volta, se a mamãe não estivesse em casa vou teria que voltar à pé, mas a coincidência é demais, 09/12 a data do meu aniversário - Não resisti, comprei.
Mamãe não estava em casa - Puta que pariu - São oito quilômetros de volta, a pé - porque gastei minha grana nessa merda de bilhete? – Cachaça sempre tem que te ofereça. Alves, ex-companheiro de trabalho, me chamou pra uma depois que nos encontramos no meio do caminho. Fiquei sem graça de pedir o dinheiro emprestado mas aceitei a aguardente de bom grado. Bebi o copo liso em dois goles. Aquilo era o melhor que eu tinha em dias. Na TV empoeirada do botequim, passava o jornal. O repórter com a voz empossada, engravato, falava à distância daquilo que eu vivia na pele – o desemprego subiu 2% em setembro e blá blá blá – parei de prestar atenção e comecei a conversar com o Alves. Cinco minutos depois ele pediu silencio. Olhou fixo pra televisão – perai, é o resultado da loto! – Olhei também, odiando ter gastado minha ultima grana com essa merda. Um minuto depois estava murmurando “finalmente acordou hein rapaz...” mais pra mim do que pra qualquer outra pessoa. Alves me pegou nesse momento meio desprevenido – Tá falando com quem cara? – perguntou com cara de riso – Nada não – respondi – só acabei de me tocar que Deus existe.