quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Toca

Flávio Christo

- Não Meleca, você tem que ir por trás dele, ai lá atrás você cai, entendeu?
Meleca não falava muito, mas entendia quando lhe diziam o que fazer.
- Tendi sim! – respondeu com aquela voz rouca e afetada.
O plano era o Meleca passar entre duas barracas da feira, quando chegasse atrás dos feirantes, caia, fingia uma convulsão colocando um sonrisal na boca, assim todos se distraiam e eu roubava umas frutas. Fazia quase um dia que estávamos só cheirando cola, sem colocar nada pra dentro da barriga.
- Agora vai, mas vai rápido!
Meleca saiu andando, fingindo uma leve cambaleada, na hora certa ele caiu de um jeito tão bonito no chão que até eu quase acreditei que ele tinha desmaiado mesmo. Um monte de gente parou pra olhar e ajudar a socorrer. Enquanto isso eu catei o que pude da barraca mais próxima, quando tava a uns bons vinte metros, soltei um assovio. Meleca se levantou como quem se recupera lentamente, é bom ator o desgraçado, pediu um copo d’água e de quebra ainda ganhou três maçãs “deve ter passado mal de fome, coitado” falou uma feirante gorda com um pano na cabeça.
Nenhum de nós comeu nada até estar no lugar seguro e combinado. Morávamos, eu e ele, no vão de um viaduto uns 500 metros pra baixo da feira. O buraco era pequeno, entrava só nós dois, por isso era seguro, gente grande não passava. Ali dava pra esconder dos outros sem ser achado e, se fosse achado, sem ser pego.  Quando contamos, tinha dado uma penca pequena de bananas, cinco mexericas e as três maçãs do Meleca. Dava pra forrar a barriga até o dia seguinte pelo menos.
Comecei comendo uma mexerica que tava até brilhando a casca de tão fresquinha “olha Meleca, olha que coisa bonita. Quem vende isso aqui num passa fome não. Já imaginou coisa mais gostosa? Não existe. Mexerica é a melhor coisa que tem!” falei. “Sei não, prefiro arroz cum fejão”. “Que bosta hein Meleca? Só abre a boca pra falar merda também. Um dia vou ser fazendeiro, vou ter uns mil pés de mexerica na minha fazenda, pra eu poder vender muito, ficar rico e ainda chupar mexerica o dia todo. Não, melhor, a vida toda!”. Mais que pra não arrumar confusão do que pra consentir com meu pensamento, Meleca ficou calado, só escutando. Depois de uma mexerica e uma maçã pra cada, demos uma puxada boa na garrafa de cola. Dormimos.


Meu nome é Arlindo, mas todo mundo me conhece por Meleca,o por que eu não sei. É desses apelidos que surgem de uma mistura de nada com não sei o quê. Acho que tenho nove anos. Moro com meu amigo Rafinha embaixo do viaduto. Gosto dele, só que fala muito. Só porque tem nome bonito e completo acha que é bom. Ele diz que é Rafael Couto dos Reis. Outro dia falei pra que não é por que tem rei no nome que é rei de verdade, mas o moleque não entende. Mais cedo roubamos os feirantes, conseguimos uns negócios pra comer, ai ele deu uma cheirada na cola e ta dormindo há tempão. Eu já dormi e acordei, e já voltei na feira, na xepa, pra ver se consigo alguma coisa.
 O Rafinha tinha falado que queria ser dono de fazenda de pé de mexerica, pra poder comer mexerica o ano todo. Imagino que o feirante faça isso também, gordo que é. Pedi pra ele se tinha alguma coisa pra mim, me deu mais três bananas despencadas e amassadas, mas já era algo. Fiquei conversando com ele um pouco “Deve ser bom ser fazendeiro de mexerica, né? Comer isso o ano todo?” “Num é não moleque, mexerica só dá uma vez no ano.Só em maio” “mas o senhor não vende o ano todo?” “mexerica não, vendo outras coisas” “e por que não vende?” “por que não tem, oras, acabei de te falar! Agora chispa daqui, vai embora.” As pessoas tinham tendência a perder a paciência comigo, eu nunca entendi o motivo.
 O asfalto tava quente, queimava a sola do meu pé, que mesmo já grossa ainda sentia uma coisa ou outra. Pra aliviar a dor, dei uma cheirada na garrafinha de cola. No meio da onda, dois caras me agarraram. Fiquei bem umas duas horas sem entender o que tinha acontecido. Quando dei por mim, tava num quarto, trancado e sem janela. Desesperei. Procurei a garrafa pra todo lado e não achei. Apaguei de novo. Dizem que eu tava tendo convulsões, dessa vez deve ser de verdade, por que eu não lembro de ter fingido. Me levaram pra uma sala, onde um cara tava sentado numa mesa, era alto, careca e cheirava a cigarros. Fiquei na frente dele.
- Qual seu nome moleque?
- Arlindo.
- Arlindo de quê?
- Arlindo de Arlindo só, tenho outro nome não.
- E como chama sua mãe?
- Tenho mãe não senhor.
- Tá brincando comigo moleque?
- Tô não senhor, é verdade. Num conheço mãe não, meu nome é Arlindo de Arlindo só, na rua me chamam de Meleca, mas nunca de chamaram de nada além dessas coisas não.
- E como você sabe que seu nome é Arlindo então?
- Não sei não senhor, só sei que eu sei. Talvez então nem seja, mas até agora era.
- Leva ele pro alojamento – ele falou com uma mulher que tinha me levado até na sala dele, depois virou pra mim e falou – você gosta de alguma coisa moleque? Carpintaria, cuidar de bichos, plantação?
- Plantação eu gosto sim, onde tem comida eu gosto de tá.
- Sabe ler?
- Não senhor.
- Já foi na escola alguma vez?
- Escola?
- Ok. Lurdes leva ele pro alojamento, dá um banho nele, e leva lá pra horta depois.
Lurdes me deu um banho bruto, sem cuidado, parecia que queria tirar todas as minhas caracas. Na horta ela me deixou com um velho, acho que chamava Geraldo. Ele era curvado e banguela, mas tinha uma boa habilidade na com a enxada na mão. Tava me mostrando o que era a couve, o alface, o agrião. Assim que ele falou o quê era o quê eu já tinha esquecido. Mas então ele me levou numa caixa d’água, só que não tinha água dentro, tinha terra, uma terra preta, molhadinha, dava vontade de comer. Ele enfiou a mão lá dentro e tirou um punhado de terra, no meio, umas minhocas. “isso aqui é húmus, terra de minhoca, a gente enfia as minhocas aqui e elas deixam a terra assim. É terra boa de plantar, dá pra vender isso aqui.” “e por que a terra fica preta assim?” “por que é a merda da minhoca, ela come a terra e depois caga.” Na mão dele tinha umas pouquinhas minhocas, ele jogou pra dentro da caixa de novo e tapou com uma tela fininha “tem que deixar tampado, senão os passarinhos comem tudo”.
A noite, no alojamento, tinha uma cama só pra mim, mas tinha que tomar banho de novo, antes de dormir. Eu não queria, mas fui obrigado. Senti falta da minha garrafa, mas não conseguia imaginar onde podiam ter escondido. Deitei numa cama que tinham dito que era minha. Apaguei. Acordei ouvindo umas vozes perto de mim “tem que segurar pelos braços e pelas pernas” consegui distinguir isso no meio do bochicho. Abri o olho e vi quatro moleques em volta da minha cama, assim que vi, um deles me tapou a boca, outros dois me seguraram na cama “fica quieto que vai ser melhor!”. Eram todos mais velhos, quase homem já. Aí me viraram de costas, me seguraram, baixaram minha calça e fizeram coisas que dá vergonha de falar. Só conseguia chorar, humilhado. Lurdes deve ter ouvido a risada deles, porque chegou no alojamento um pouco depois e pegou eles. Me levou embora. “Por que você tava fazendo aquilo?” “eu não queria, eles me obrigaram.” “e por que você não pediu ajuda?” “Eles disseram que ia ser pior”, eu chorava desesperado. Ela me deu um bofetão no meio da cara de disse “é pra você aprender a ser homem.”. Não me levou de volta pro alojamento, mas pro quarto que eu tava depois que cheguei. Não preguei o olho a noite toda.
De manhã me levou pra horta de novo “hoje vai aprender a plantar umas sementes”, me falou Geraldo. Era um cara bom, o único que me tratou bem. Ficamos um tempo plantando. Depois sai um pouquinho, fui lá ver as minhocas de novo. Enfiei a mão na terra e puxei, na hora saiu um monte de minhoca, tudo remexendo nos meus dedos. Foi nessa hora que olhei pra cima. A cerca tava vazia, sem ninguém vigiando. Era muita sorte. Enfiei no bolso a mão cheia de terra, com minhoca e tudo. Fui andando devagarzinho, pra ninguém desconfiar. Fugi.

Meleca ta sumido desde ontem. Dormi depois da farra na feira. Acordei e ele não tava mais aqui. Acho que foi embora. Hoje cedo acabou a cola e não consegui comprar mais. Consegui um pouco de tinner. To comendo tudo que a gente conseguiu, acho que ele não volta. Hoje cedo consegui roubar um frango de padaria. Fiquei de tocaia na esquina até o cara entrar pra atender um cliente. Quando ele entrou, corri, enfiei o frango dentro de uma sacola de pano e saí correndo. Tava assadinho, cheiroso, crocante. Peguei uma coxa, uma só, é levei o frango lá no pátio da catedral, onde os maiores ficavam de dia. Consegui só meia garrafinha de tinner pelo frango, eles disseram que até valia uma inteira se eu não tivesse tirado uma coxa “um frango inteiro, uma garrafa inteira. Se não trouxe o frango todo, como vou te dar a garrafa toda?” era justo. Voltei pro viaduto.
Já tava bem no fim da tarde quando eu vi o Meleca cambaleando na beira do rio. Tava suando frio, com uma roupa diferente, com um cheiro bom de sabonete. “Meleca? Que houve cara?” ele tava falando mais embolado que nunca. Num dava pra entender nada. Levei ele pra toca. Demorou um pouquinho até que ele falasse algo que desse pra entender, só depois que o tinner entrou nele que conseguiu dizer coisa com coisa “me levaram pra FEBEM cara.”. Fiquei triste por ele “mas lá tem comida pra caramba. Desde ontem eu comi umas quatro vezes já!” “Sério?” “Sim, comi até carne.”. Senti até inveja. “Porque tu fugiu então?” “tava precisando da cola, mas o tinner até que serve” “lá não tinha?” “não. Me disseram que eu tava tendo absti... abasti... abaste... ah, um negócio lá que eu não sei falar” “será que é doença?” “é não, agora to melhor já.”.
Depois de um tempo quieto, ele pareceu voltar a seu estado normal. “ontem voltei na feira, conversei com o fazendeiro” “pra quê?” “perguntei pra ele como era ser fazendeiro de mexerica, não entendi por que, mas ele disse que mexerica dá só em maio” “e o resto do ano” “no resto do ano não tem mexerica” “então pra quê eu vou plantar mil pés de mexerica?” “não vai mais. Tenho uma coisa mais legal” “nada é mais legal que mexerica” “é sim, plantar minhoca” “e minhoca se planta?” “planta sim, vi lá na FEBEM.” “e minhoca se come” “comer não come, mas a gente vende a bosta dela” “quem vai comprar bosta de minhoca cara? Ficou bobo? Dá uma cheirada no tinner e já começa a falar merda” “todo mundo compra, é bom pra plantação” “e onde a gente vai arrumar minhoca?” Ai ele levou a mão no bolso e tirou um torrão de terra, cheio de minhocas “ontem a tarde tinha só umas três na hora que eu vi, hoje, quando enfiei a mão na terra, saiu esse monte aqui” “cresce rápido então né?” “cresce” “e o que a minhoca come?” “terra” “e quanto tempo demora pra gente ganhar dinheiro” “se crescer igual eu vi crescendo lá, semana que vem a gente já ta vendendo”. A notícia era boa demais pra ser verdade. Quase chorei de alegria “a gente nunca mais vai passar fome meleca” “nunca mais cara”. Dei um abraço nele, tava feliz que tivesse voltado. Era a única pessoa que eu confiava. Dividi com ele a ultima mexerica. “Viva as minhocas, Meleca” “Viva!”.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Meados da década de 1950


Na manhã em que acordou para seu fatídico fim, Roberval fez tudo como fazia normalmente. Tomou seu café com uma fatia de queijo minas, tratou das galinhas e dos cães. Desceu pra horta. Não sabia e nem haveria de saber que naquele mesmo dia morreria de uma forma tão espetacular que o faria ser lembrado por anos como o Cristo do interior. Como um homem que soube morrer.
Dias antes estava preparando a cerca, um jegue havia descido a ribanceira descontrolado e arrebentado parte dela. Carecia de ser arrumada. Um mourão de eucalipto a cada metro e meio, e um arame tão bem esticado que dava pra tirar nota musical dependendo do toque que se dava. Única raiva que sentia era ter que cavar a terra molhada e pesada, culpa da incessante chuva de cinco dias. Não tinha jeito, era trabalho que não podia esperar, senão as vacas comiam toda a plantação. Como poderia saber que, por ironia, estava armando ele a própria armadilha, fadando a si mesmo ao fim prematuro?
Havia acabado de completar 33 anos, trabalhava com a terra desde que se entendia por gente. Nunca foi homem de cidade, preferia o cheiro de mato, a textura do barro. A mulher que tinha delírios de modernidade. Certa vez cismou de ir no vilarejo assistir a moda da época, um cinema itinerante que ficaria apenas um dia por ali, talvez nunca mais voltasse. “Falam que eles colocam as pessoas numa tela branca, é como se tivesse tirado um monte de foto, só que as fotos se mexem” “foto se mexendo? Isso não pode ser coisa de Deus não. Não vamos” ponto final.
Sua plantação ficava a quase dois quilômetros de casa, numa outra parte da fazenda em que vivia como colono. Mesmo sem noção política, nunca entendeu essa injustiça “é muita terra pra pouca gente”. No caminho, passava pela casa do dono. Um casarão branco, com janelas de madeira e alicerces pintados de azul turquesa, um verdadeiro primor. Mesmo não achando justo, sempre aprendeu a não cobiçar as coisas do próximo, e por isso não cobiçava, mas também não o amava.
 Apesar de arranjado, teve um casamento feliz. Sempre que saia de casa, via a esposa ainda ao longo da estrada, e sempre que olhava pra trás, ela estava na porta, pronta pra lhe acenar um tchau com a mão e com o coração apertado por vê-lo ir. Na porta continuava até que ele virasse a curva. Naquela manhã, ela tinha aconselhado que não saísse de casa, pois a chuva não lhe deixaria trabalhar. Sempre foi teimoso, nunca conseguiu ficar preso Depois do café, foi para a plantação, como sempre. Na virada da virada da curva, deu seu ultimo aceno.
Tinha a mania de conversar com as plantas, adorava ver uma semente crescer. Não que acreditasse que as plantas ouvissem, mas era terapêutico fazê-lo. Tinha apreço particular por um pé de mexerica, com sete anos de idade, que florescia todo mês de maio, dando tanto fruto que entortava os galhos.  Adubou a terra, arou um canteiro, plantou cenouras, colheu couve.  Almoçou a marmita. A terra continuava molhada e escorregadia. Parte da plantação era em um local com morro, onde a parte mais baixa acabava na cerca recém reformada. Voltou àquele ponto, continuou a colheita.
Não, não há, nem nunca existirá, uma premonição da morte. Não há anjos que o avisem que em instantes você estará inerte. Não há sinos que toquem. Jamais houve, e se houve, jamais saberemos a verdadeira versão destas histórias. A verdade é que Roberval capinava o canteiro, recolhendo erva daninha como em qualquer outro momento poderia estar fazendo, e se abaixou para retirar com a mão uma raiz mais difícil como sempre fazia e lentamente escorregou em uma folha de couve molhada que havia no chão. Escorregou inocentemente, sem sequer usar as mãos como apoio, batendo com força o rosto na enxada. Com sangue escorrendo pelos olhos, viu o mundo começar a girar e entendeu que estava rolando ladeira abaixo. Em um relance de visão, viu a cerca se aproximando, inevitavelmente se chocaria com ela, e foi nesse momento que percebeu que inexoravelmente estava morto. Notem que não foi premonição e sim, simples dedução.
Bateu de costas num mourão que rachou, soltando uma lasca que lhe atravessou o peito. Os braços ficaram abertos, a camisa de moletom grudou no arame farpado e os manteve dessa forma. Sobreviveu apenas o suficiente pra entender que não havia transcendência alguma. Que a vida poderia tanto existir, como não existir. Era apenas uma questão de instante. Num instante você é, no outro não é mais. Simples assim. Foi encontrado apenas no dia seguinte, pela esposa horrorizada. Ela veio lhe procurar por não ter voltado para a casa no dia anterior. Guardou o luto para o resto da vida.
Ninguém sabe precisar ao certo a data em que ocorreu. A lembrança exata se esvaiu com o tempo. O que se sabe é que o mourão foi substituído por uma cruz branca e alta. Na fazenda, até hoje conta-se a história, mas já há nela ares de lenda. Alguns dizem até que é possível vê-lo na horta em algumas ocasiões. Mas isso é o que acontece com os mitos, com as pessoas que sabem morrer, que morrem de forma grandiosa: Viram histórias fantásticas.  A semelhança com Cristo quase lhe rendeu cultos entre os colonos. Diziam que seria a salvação deles. Foi quase, o culto não ocorreu. Roberval no entanto atingiu fama que jamais pensou em conquistar em vida, na verdade, jamais pensou no que seria fama.  Nasceu, cresceu e morreu como um homem da terra.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Fim de setembro


Por Flávio Christo
Tentei achar outros termos pra descrever minha situação. Fui dos mais chulos aos mais requintados, mas nada demonstrava melhor o que eu queria dizer do falar que:
- Eu estava fodido! Inexorável e irremediavelmente na merda.
A semana começou com a segunda feira quente, compensando toda a chuva que caiu na folga. Meu cachorro ficou doente, cagou a casa toda. Minha vizinha de baixo reclamou do cheiro e do choro. Recebi uma multa de condomínio. Por ficar limpando a casa, mal dormi durante a noite, o dia de trabalho por isso não rendeu.  À noite, na faculdade, cochilei durante a aula. Cheguei em casa e tudo estava cagado de novo. Repete o ciclo na terça.
Ao fim da semana não consegui bater minha meta, por causa disso, a promoção que eu esperava não veio e foi dada ao cara mais canastrão de todos. Aquele que ganha mérito no serviço da gente. Pra piorar, na sexta feira teve prova, que eu não sabia da existência porque dormi na aula, e não sabia a matéria pelo mesmo motivo. Resumindo, me ferrei.
No domingo fui à casa da minha mãe, precisava de colo, de sossego e de um lugar pra deixar o cachorro correr. Não agüentava mais ele latindo no apartamento.  Mas eu acho que, se existe, em alguma instância, em algum lugar, de alguma forma, algo que controle a sorte de uma pessoa, a que deveria controlar a minha vida estava em coma.  Começou a chover, meu cachorro ficou preso do outro lado do quintal. Minha mãe ao ir buscá-lo, caiu e quebrou a perna, no caminho pro hospital, bati o carro.
Parece exagero, falando tudo assim resumido, uma coisa atrás da outra. Mas é que desgraça, quando reunida, parece sempre mais volumosa. Nunca fui de crendices, mas depois dessa semana eu resolvi apelar pra alguma coisa. Dei uma chegada num centro de umbanda perto de casa e pedi proteção, comunguei na igreja, jejuei e tomei um passe espírita. Tentei de tudo que pudesse me tirar da maré. No dia seguinte, minha namorada terminou comigo. Perdi o emprego. Resumo: Multa de condomínio, remédio pro cachorro, mãe com perna quebrada, dente faltando – resultado da batida – ferro na faculdade, sem namorada e sem emprego. Isso em sete dias corridos, nem foram dias úteis.
O relógio bateu sete horas e eu acordei mais pelo hábito que pela obrigação. A idéia de estar desempregado ainda não tinha fixado na mente. De qualquer forma lembrar que poderia dormir um pouco mais me fez sorrir. Deitei, não consegui fechar os olhos de novo. Levantei. Fui para o computador e fiz um currículo caprichado. Enviei pra umas dez empresas. Esperei. O dinheiro foi acabando, a paciência, a comida. Ah sim, já tinha dentes de novo, gastei o seguro desemprego arrumando  -  O cachorro finalmente parou de cagar em tudo – pelo menos a casa já não cheirava tão mal. Minha mãe ligou – ta tudo bem mãe/ e a perna, melhorou? – não queria dizer pra ela a merda em que eu me encontrava.  A perna pelo menos melhorava. Agora faltavam só dois meses de pinos. Depois cirurgia e fisioterapia. De alguma forma me sentia culpado pela perna dela, primeiro porque foi o meu cachorro que estava preso no quintal, segundo porque foi culpa da minha maré de falta de sorte (descobri que falar azar dá azar - ops).
Comi a ultima banana da fruteira. A lata de arroz tava quase vazia. Mamãe precisava saber. Quatro reais no bolso. Era a passagem de ônibus apenas. Ida e volta. O ponto era em frente à uma casa lotérica. O vendedor falou – é burro na cabeça. 0912, milhar boa, vai uma ai? – aquilo era ultrajante. O bilhete custava dois reais, o preço da passagem de volta, se a mamãe não estivesse em casa vou teria que voltar à pé, mas a coincidência é demais, 09/12 a data do meu aniversário - Não resisti, comprei.
Mamãe não estava em casa - Puta que pariu - São oito quilômetros de volta, a pé - porque gastei minha grana nessa merda de bilhete? – Cachaça sempre tem que te ofereça. Alves, ex-companheiro de trabalho, me chamou pra uma depois que nos encontramos no meio do caminho. Fiquei sem graça de pedir o dinheiro emprestado mas aceitei a aguardente de bom grado. Bebi o copo liso em dois goles. Aquilo era o melhor que eu tinha em dias. Na TV empoeirada do botequim, passava o jornal. O repórter com a voz empossada, engravato, falava à distância daquilo que eu vivia na pele – o desemprego subiu 2% em setembro e blá blá blá – parei de prestar atenção e comecei a conversar com o Alves. Cinco minutos depois ele pediu silencio. Olhou fixo pra televisão – perai, é o resultado da loto! – Olhei também, odiando ter gastado minha ultima grana com essa merda. Um minuto depois estava murmurando “finalmente acordou hein rapaz...” mais pra mim do que pra qualquer outra pessoa. Alves me pegou nesse momento meio desprevenido – Tá falando com quem cara? – perguntou com cara de riso – Nada não – respondi – só acabei de me tocar que Deus existe.